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WALTER CENEVIVA
O mito da igualdade no futebol
Observada com olhos jurídicos, a Copa do Mundo sugere alguma sensibilidade para evitar o exagero
A CONSTITUIÇÃO brasileira deve ser a que dedica maior número de palavras ao desporto, nada obstante seja recente a prática poliesportiva em nosso país. A
Argentina serve de comparação.
Destacou-se durante os primeiros
decênios do século 20, em espécies
mais sofisticadas (tênis, golfe e pólo,
por exemplo) e nas mais populares
(pugilismo e futebol), com muitos
militantes de boa qualidade. O Brasil, no mesmo período, era comparativamente mais fraco no retrospecto geral.
Tivemos extraordinários campeões na segunda metade do século
anterior, com Maria Esther Bueno
no tênis, Ademar Ferreira da Silva
no salto triplo e Eder Jofre no boxe.
Melhoramos muito nos últimos
trinta anos, em vôlei, basquete, ginástica, mas a participação nos Jogos Olímpicos só progrediu depois
de 1980. Em compensação, temos o
futebol, com cinco títulos mundiais,
personificado em Pelé, expressando a monocultura subsistente, tal a
predominância desse esporte, no
gosto popular, na mídia e na ambição de jovens nas classes pobres.
Com a Copa Mundial, vemos o
país inteiro submetido aos deuses
da seleção. Repartições públicas vivem dias truncados para que os servidores vejam os jogos. Escolas interrompem aulas. Bancos dispensam funcionários. Audiências e julgamentos são suspensos ou transferidos, agravando o congestionamento das pautas. No país continental de muitos fusos horários, a
cidadania regula relógios e atividades pelos compromissos do selecionado. Para quem gosta de futebol é
a glória. Nesta Copa, porém, até alguns que adoram esse esporte perceberam o exagero, no qual todos os
outros interesses cedem lugar aos
ídolos, seus valores, suas peculiaridades, na apoplexia da divulgação
extremada.
A restrição principal atinge os
que não se ligam ao futebol. Seu direito individual ao sossego e à normalidade da vida é embaraçado,
tanto o dos necessitados de serviços, quanto os prestadores de serviços não interrompíveis, tratados
desigualmente. A Constituição afirma o mito de igualdade de todos perante a lei. A Copa do Mundo confirma o mito para os prejudicados.
Lembro o episódio angustiante dos
paulistanos que, no rush antes dos
jogos, viram fechar-se as estações
do metrô pela impossibilidade de
receberem mais gente, com segurança.
Os defensores da maioria demográfica dirão que o critério é democrático. Não, porém, neste caso. No
futebol, ao lado do interesse gerado
pela publicidade desproporcional,
acabamos esquecendo dos bilhões
de dólares que fluem por trás dos heróis da bola, profissionais pagos a
peso de ouro. São os "midas" num
país de pobres. "Ah!", dirá alguém
versado em história: "nas Olimpíadas gregas, séculos antes de Cristo,
também era assim". Os deuses do
atletismo eram aplaudidos, cantados em poemas, premiados com ouro e louros. Nem a história nem as
maiorias compensam, porém, o direito sacrificado, desrespeitando,
assim, o artigo 5º da Carta Magna.
Observada com olhos jurídicos, a
Copa do Mundo sugere, no mínimo,
alguma sensibilidade para evitar o
exagero. A inspiração vem do artigo
217. Atribui ao Estado o dever de
"fomentar práticas desportivas formais e não formais, como direito de
cada um". No inciso II está imposta
a "destinação de recursos públicos
para a promoção prioritária do desporto educacional". Ler a Constituição é bom.
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