São Paulo, segunda-feira, 24 de julho de 2000


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MOACYR SCLIAR

A arte e a técnica de virar a mesa

 CBF se curva à Justiça, mas repete a virada de mesa
Folha Esporte, 20.jul.2000

No começo era um pouco difícil, mesmo porque mesas em geral não foram feitas para serem viradas. Na concepção mais comum, comprovada por ilustrações remontando a épocas muito antigas, devem ficar com o tampo para cima; para o céu, se quiserem. Já as pernas devem se apoiar sobre o solo, sobre a Terra. É uma posição de equilíbrio real e simboliza uma certa hierarquia de valores. Mesas são usadas para coisas civilizadas: para refeições, para o trabalho, para o jogo de xadrez ou de gamão, para assinatura de acordos. É verdade que, por baixo da mesa, muita coisa pode acontecer: sub-reptícios pontapés entre adversários ou, ao contrário, uma furtiva carícia na coxa da bela comensal.
A existência de uma vida secreta sob a mesa é, de modo geral, admitida como um mal necessário, uma condição para a manutenção do statu quo.
De repente vem alguém e vira a mesa. A reação inicial das pessoas é de profundo choque. Ali está aquela tradicional peça do mobiliário com o tampo para baixo e as pernas para cima, numa posição -para dizer o mínimo- constrangedora. De modo que muitos se precipitam e desviram a mesa. Todos aplaudem, aliviados.
Mas, logo se descobrirá, é um alívio transitório. A virada de mesa equivale à perda da virgindade: é irreversível. Virada uma vez, a mesa pode ser virada sempre. E a cada vez será mais fácil. É como se a mesa de alguma forma colaborasse com o virador, como se ansiasse por ser virada (há quem diga que mesas foram vistas virando-se sozinhas, dando verdadeiras cambalhotas, mas isto já deve ser produto do imaginário popular).
E aí começam a surgir manuais sobre as maneiras mais fáceis de virar a mesa e cursos de treinamento e instituições especializadas na área: Associação dos Viradores de Mesa, algo no estilo. Em verdade, muitas pesquisas estão em curso, buscando a resposta para uma pergunta que se afigura crucial: que desenho devem ter as mesas para serem mais facilmente viradas?
Uma proposta nesse sentido substitui as pernas por uma semi-esfera, o que de fato facilita muito a virada de mesa.
Mas e o tampo? Como fica o tampo, este último bastião da moral convencional?
Ninguém ousa dizer, mas é certo que o tampo também está condenado. Se a mesa vai ser virada, para que tampo?
Todo mundo sabe que o tampo breve será substituído por outra semi-esfera. Ou seja, a mesa do futuro terá forma esférica. Tal como... a bola de futebol? É, tal como a bola de futebol.


O escritor Moacyr Scliar escreve nesta coluna, às segundas-feiras, um texto de ficção baseado em matérias publicadas no jornal.


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