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MOACYR SCLIAR
A arte e a técnica de virar a mesa
CBF se curva à Justiça, mas repete a
virada de mesa
Folha Esporte, 20.jul.2000
No começo era um pouco
difícil, mesmo porque mesas
em geral não foram feitas para serem viradas. Na concepção mais
comum, comprovada por ilustrações remontando a épocas muito
antigas, devem ficar com o tampo
para cima; para o céu, se quiserem. Já as pernas devem se apoiar
sobre o solo, sobre a Terra. É uma
posição de equilíbrio real e simboliza uma certa hierarquia de
valores. Mesas são usadas para
coisas civilizadas: para refeições,
para o trabalho, para o jogo de
xadrez ou de gamão, para assinatura de acordos. É verdade que,
por baixo da mesa, muita coisa
pode acontecer: sub-reptícios
pontapés entre adversários ou, ao
contrário, uma furtiva carícia na
coxa da bela comensal.
A existência de uma vida secreta sob a mesa é, de modo geral,
admitida como um mal necessário, uma condição para a manutenção do statu quo.
De repente vem alguém e vira a
mesa. A reação inicial das pessoas
é de profundo choque. Ali está
aquela tradicional peça do mobiliário com o tampo para baixo e
as pernas para cima, numa posição -para dizer o mínimo-
constrangedora. De modo que
muitos se precipitam e desviram a
mesa. Todos aplaudem, aliviados.
Mas, logo se descobrirá, é um
alívio transitório. A virada de
mesa equivale à perda da virgindade: é irreversível. Virada uma
vez, a mesa pode ser virada sempre. E a cada vez será mais fácil. É
como se a mesa de alguma forma
colaborasse com o virador, como
se ansiasse por ser virada (há
quem diga que mesas foram vistas virando-se sozinhas, dando
verdadeiras cambalhotas, mas isto já deve ser produto do imaginário popular).
E aí começam a surgir manuais
sobre as maneiras mais fáceis de
virar a mesa e cursos de treinamento e instituições especializadas na área: Associação dos Viradores de Mesa, algo no estilo. Em
verdade, muitas pesquisas estão
em curso, buscando a resposta
para uma pergunta que se afigura crucial: que desenho devem ter
as mesas para serem mais facilmente viradas?
Uma proposta nesse sentido
substitui as pernas por uma semi-esfera, o que de fato facilita muito
a virada de mesa.
Mas e o tampo? Como fica o
tampo, este último bastião da
moral convencional?
Ninguém ousa dizer, mas é certo que o tampo também está condenado. Se a mesa vai ser virada,
para que tampo?
Todo mundo sabe que o tampo
breve será substituído por outra
semi-esfera. Ou seja, a mesa do
futuro terá forma esférica. Tal como... a bola de futebol? É, tal como a bola de futebol.
O escritor Moacyr Scliar escreve nesta
coluna, às segundas-feiras, um texto de
ficção baseado em matérias publicadas
no jornal.
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