São Paulo, sábado, 24 de agosto de 2002

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LETRAS JURÍDICAS

Advogado criminalista tem suas angústias

WALTER CENEVIVA
COLUNISTA DA FOLHA

A advocacia gera, muitas vezes, angústia nos seus praticantes ao atender o cliente sobre o qual está incerto quanto a seu comportamento ético. Tais dúvidas podem existir para todos os profissionais, mas são especialmente preocupantes para certos tipos de delito. Por isso conceituados criminalistas não acompanham casos de tráfico de drogas. Outros abominam os crimes sexuais, sobretudo contra vítimas menores. Os mais conceituados profissionais do júri, em que são julgados crimes dolosos contra a vida, realizados ou tentados, gostam das batalhas forenses, mesmo em face do réu confesso, entre outras razões porque a empolgação do teatro perante o corpo de jurados é irresistível.
Raimundo Pascoal Barbosa, recentemente falecido, foi um dos nossos criminalistas mais conceituados no século 20, com 50 anos de atuação marcada pela dignidade e pelo rigor, honrando sua profissão como advogado e como dirigente da OAB e da Associação dos Advogados de São Paulo. Era advogado exemplar, na seriedade de sua conduta, mas, como é evidente, muitos de seus clientes não estarão sentados à direita de Deus Pai no dia do juízo final. Nem era obrigação dele preocupar-se com a salvação das almas.
O advogado não julga o cliente. Avalia sua conduta e sabe da obrigação fundamental, constitucional, de o defender. A figura paradigmática de Raimundo Pascoal Barbosa, que conheci nos últimos 40 anos, serve bem ao argumento.
A natural constitucionalidade da defesa, em favor de qualquer acusado, é sagrada. Decorre de outro direito inafastável, o da presunção da inocência, que muitos tendem a recusar quando o acusado não é do seu grupo. Segmentos da sociedade quereriam que esse direito fosse negado a certos acusados, sobretudo aqueles que a mídia transforma em monstros sociais. Não é possível atendê-los. A consciência dos advogados, mesmo nos momentos de dúvida sobre certas ações de seus clientes, tem presente -e sempre deve ser assim- que o criminoso tem, pelo menos, o direito de não ser punido com pena mais grave do que a lei prevê para seu delito.
O episódio dramático e tristíssimo da menina Tainá tem dose emocional que perturba a avaliação. As circunstâncias ainda nebulosas do caso (impossíveis de serem inteiramente aclaradas fora dos autos ante a imposição do segredo de justiça) sugerem que a tapeçaria de vários destinos bordou para eles o cruzamento de fios que talvez nunca se encontrassem em outras circunstâncias. Mas encontraram-se. O acusado do crime, mesmo sem a força impactante da tragédia, teria dias difíceis pela frente. Será absolvido? Será condenado? Não se sabe. Mas terá sempre direito de defesa, integralmente assegurado, como meio único de fazer a justiça da qual o Estado detém o monopólio.
O direito de defesa, já ficou dito ao longo do tempo, não se destina a ajudar os culpados. Existe para assegurar que os inocentes possam ser inocentados, embora nem sempre o sejam, e, havendo graus de gravidade, que os culpados não sejam punidos mais do que devem ser em face da lei e que, havendo dúvida razoável sobre sua participação, sejam absolvidos. O direito antigo já dizia "in dubio pro reo" (na dúvida se julga a favor do réu). É assim no direito americano: só se condena quando as provas sejam "beyond reasonable doubt" (além de uma dúvida razoável).


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