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LETRAS JURÍDICAS
São Paulo, a religião, os bons costumes e a lei
WALTER CENEVIVA
COLUNISTA DA FOLHA
Conta-se de são Paulo, o
santo protetor desta metrópole gigante e propagador da
fé cristã, que ele tinha capacidade
de convencer os destinatários de
sua mensagem em enunciados
simples e diretos, compatíveis
com o melhor estilo de seu tempo.
Essa qualidade permitiu-lhe
transmitir as palavras do Cristo,
de modo acessível à compreensão
de todos, e simultaneamente capazes de os converter. Se o cristianismo chegou ao terceiro milênio
como colcha de retalhos com as
numerosas denominações religiosas, dos que dizem falar em nome
de Jesus, não é culpa de são Paulo.
A pluralidade de rumos é estimulada pelos meios de comunicação e pela plena liberdade constitucional da crença, com livre
exercício dos ritos de qualquer fé
religiosa. Qualquer fé, sem exceção. Todas possuem profetas ou
mensageiros com suas palavras
simbólicas, aceitas por quem tem
fé e força para esquecer a decomposição racional e lógica do fenômeno religioso.
Tomemos, nesta consideração,
três das grandes religiões que se
inspiraram nas versões originais
do Velho Testamento: judaísmo,
cristianismo (em suas muitas
subdivisões) e islamismo. A especial diferença entre elas está em
acolher ou não o Novo Testamento. Mesmo as que o acolhem têm
divergências radicais. Serve de
exemplo a versão católica da virgindade de Maria, cuja condição
imaculada só foi afirmada séculos depois de sua morte pelos doutores da Igreja. O judaísmo, em
Israel, é religião do Estado. No islamismo, a religião é fonte das
leis do Estado. Em todas há versões cuja aceitação é desajustada
da pura racionalidade. Em síntese, ser religioso é ter fé em palavras e símbolos tão variáveis
quanto é diversa a compreensão
que estes provocam.
A lei humana, sob essa ótica,
não está longe da religião, mesmo
que se saiba da restrita crença na
lei dos homens. Tome-se a frase
"todos são iguais perante a lei".
Os juristas acreditam nisso e douram a pílula dizendo que não se
trata de igualdade plena, mas perante a lei, para o direito.
Nós sabemos, contudo, que a
igualdade perante a lei é teórica.
Um exemplo ajuda. A lei proclama o direito de todos ao bem-estar, ao bem comum. São expressões vagas, incapazes de definir
realidades concretas. Bem comum e bem-estar seriam valores
médios garantidos em termos
materiais e morais, a todos, todo
o tempo. A garantia não existe.
A lei, portanto, se serve de conceitos errados ou insuficientes
quando trata do bem geral, estranho à maioria do povo. Neste dia
da maior cidade do planeta com
o nome de são Paulo, acrescentei
mais uma preocupação. É evidente o enfraquecimento da separação constitucional entre religião e
Estado, em particular a contar do
uso de televisão e rádio, por meio
de concessões do Poder Público federal. As leis estão transformando o Estado laico em ficção.
Voltando ao começo, cabe última meditação: Paulo, embora
desprovido de meios, comunicou
e consolidou o cristianismo. Maomé fez o mesmo com o islamismo.
O judaísmo, a religião mais antiga das três, continua na força das
convicções do Velho Testamento.
Já a lei humana, mesmo nos Estados de religião oficial, raramente
(ou nunca) compatibiliza credibilidade com avaliação racional
das crenças e de suas palavras-chaves. A lei traz com ela a imposição oficial, mas não preserva os
desprovidos de meios, nem torna
efetiva a igualdade de todos. O
bem-estar geral, com o qual são
Paulo sonhou, também é um sonho dos habitantes da grande
metrópole paulistana. Precisarão
de uma grande dose de fé para
acreditarem nele.
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