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São Paulo, sábado, 25 de janeiro de 2003

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LETRAS JURÍDICAS

São Paulo, a religião, os bons costumes e a lei

WALTER CENEVIVA
COLUNISTA DA FOLHA

Conta-se de são Paulo, o santo protetor desta metrópole gigante e propagador da fé cristã, que ele tinha capacidade de convencer os destinatários de sua mensagem em enunciados simples e diretos, compatíveis com o melhor estilo de seu tempo. Essa qualidade permitiu-lhe transmitir as palavras do Cristo, de modo acessível à compreensão de todos, e simultaneamente capazes de os converter. Se o cristianismo chegou ao terceiro milênio como colcha de retalhos com as numerosas denominações religiosas, dos que dizem falar em nome de Jesus, não é culpa de são Paulo.
A pluralidade de rumos é estimulada pelos meios de comunicação e pela plena liberdade constitucional da crença, com livre exercício dos ritos de qualquer fé religiosa. Qualquer fé, sem exceção. Todas possuem profetas ou mensageiros com suas palavras simbólicas, aceitas por quem tem fé e força para esquecer a decomposição racional e lógica do fenômeno religioso.
Tomemos, nesta consideração, três das grandes religiões que se inspiraram nas versões originais do Velho Testamento: judaísmo, cristianismo (em suas muitas subdivisões) e islamismo. A especial diferença entre elas está em acolher ou não o Novo Testamento. Mesmo as que o acolhem têm divergências radicais. Serve de exemplo a versão católica da virgindade de Maria, cuja condição imaculada só foi afirmada séculos depois de sua morte pelos doutores da Igreja. O judaísmo, em Israel, é religião do Estado. No islamismo, a religião é fonte das leis do Estado. Em todas há versões cuja aceitação é desajustada da pura racionalidade. Em síntese, ser religioso é ter fé em palavras e símbolos tão variáveis quanto é diversa a compreensão que estes provocam.
A lei humana, sob essa ótica, não está longe da religião, mesmo que se saiba da restrita crença na lei dos homens. Tome-se a frase "todos são iguais perante a lei". Os juristas acreditam nisso e douram a pílula dizendo que não se trata de igualdade plena, mas perante a lei, para o direito.
Nós sabemos, contudo, que a igualdade perante a lei é teórica. Um exemplo ajuda. A lei proclama o direito de todos ao bem-estar, ao bem comum. São expressões vagas, incapazes de definir realidades concretas. Bem comum e bem-estar seriam valores médios garantidos em termos materiais e morais, a todos, todo o tempo. A garantia não existe.
A lei, portanto, se serve de conceitos errados ou insuficientes quando trata do bem geral, estranho à maioria do povo. Neste dia da maior cidade do planeta com o nome de são Paulo, acrescentei mais uma preocupação. É evidente o enfraquecimento da separação constitucional entre religião e Estado, em particular a contar do uso de televisão e rádio, por meio de concessões do Poder Público federal. As leis estão transformando o Estado laico em ficção.
Voltando ao começo, cabe última meditação: Paulo, embora desprovido de meios, comunicou e consolidou o cristianismo. Maomé fez o mesmo com o islamismo. O judaísmo, a religião mais antiga das três, continua na força das convicções do Velho Testamento. Já a lei humana, mesmo nos Estados de religião oficial, raramente (ou nunca) compatibiliza credibilidade com avaliação racional das crenças e de suas palavras-chaves. A lei traz com ela a imposição oficial, mas não preserva os desprovidos de meios, nem torna efetiva a igualdade de todos. O bem-estar geral, com o qual são Paulo sonhou, também é um sonho dos habitantes da grande metrópole paulistana. Precisarão de uma grande dose de fé para acreditarem nele.


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