São Paulo, segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

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MOACYR SCLIAR

Sobre as águas


Sonhou que estava no convés anunciando a todos que estava, literalmente, abandonando o barco


Mulheres de biquíni na piscina, bebida rolando solta, jogatina liberada no cassino equipado com mesas de carteado, roletas e caça-níqueis. Tudo isso tendo como cenário as praias de Búzios e Ilhabela: "A gente embarcou no dia 18 no navio Vision of the Seas, da Royal Caribbean, achando que ia se divertir pra caramba", disse A.T., 30. Mas calhou de ele entrar no navio e topar com 850 religiosos que ali estavam para fazer um cruzeiro católico. Cotidiano, 24 de janeiro de 2010

A IDEIA DA viagem já surgiu sob o signo da controvérsia. Ele queria, como em outros anos, tirar férias na casa que tinham no litoral paulista; duas semanas lá seriam suficientes para que pudesse se recuperar de um ano estafante. A esposa, porém, não estava de acordo.
"Você descansa, mas eu trabalho", disse, e de fato, a ela cumpria arrumar a casa, fazer compras, cozinhar. Tinha uma contraproposta: um cruzeiro marítimo, coisa que nunca haviam feito, e que seria, disso ela tinha certeza, algo surpreendente, uma experiência completamente nova. Discutiram muito, mas por fim ele acabou concordando. Ela providenciou tudo e no dia marcado lá estavam eles, a bordo do gigantesco navio de cruzeiro.
Mal começou a viagem ele deu-se conta de que aquele não seria um cruzeiro comum. No tombadilho, havia gente rezando, havia gente cantando em coro. Não tardou a descobrir: a maioria dos passageiros estava ali participando de um cruzeiro religioso.
A esposa jurou que não sabia desse detalhe. Mas, crente fervorosa, mostrou-se absolutamente encantada: seria uma oportunidade única para demonstrar sua fé, e de imediato fez amizade com os coordenadores do programa religioso.
O marido, porém, ficou furioso. Embora batizado, rotulava-se como ateu praticante: não rezava, não ia a igreja. A mulher, compreensiva, evitava brigar com ele por causa disso. Mas, ponderou, já que o destino criara aquela oportunidade, o esposo poderia, apenas para satisfazê-la, participar em alguma atividade, uma única que fosse. Por exemplo, assistindo à missa que o padre rezaria no convés.
Ele recusou, irritado. Ficaria no camarote, lendo. E foi o que fez. Mas, mesmo com a porta fechada, ele não pôde deixar de ouvir o sermão. O padre falava sobre o episódio em que Jesus vai ao barco de seus discípulos, caminhando sobre as agitadas águas do mar.
Acabou adormecendo. Sonhou que estava no convés, anunciando à mulher e a todos os passageiros ali reunidos que tinha chegado a seu limite e que estava, literalmente, abandonando o barco. Feito o pronunciamento, foi até a amurada, desceu pela escada de cordas por ordem dele ali colocada. Lá embaixo deveria haver um barco, que ele igualmente mandara colocar, no qual se afastaria, remando. Mas, por alguma razão, não havia barco algum. Hesitou um momento; e aí, para sua própria surpresa, saiu caminhando sobre as ondas.
Nesse momento, a porta do camarote se abriu era a esposa, voltando, e ele acordou. E, embora não dissesse nada, sentiu que alguma razão ela tinha: cruzeiros podem às vezes surpreender as pessoas.


MOACYR SCLIAR escreve nesta página, às segundas-feiras, um texto de ficção baseado em notícias publicadas na Folha.

moacyr.scliar@uol.com.br


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