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MOACYR SCLIAR
Sobre as águas
Sonhou que estava no convés anunciando a todos que estava, literalmente, abandonando o barco
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Mulheres de biquíni na piscina, bebida
rolando solta, jogatina liberada no cassino equipado com mesas de carteado, roletas e caça-níqueis. Tudo isso tendo como cenário as praias de Búzios e Ilhabela: "A gente embarcou no dia 18 no navio
Vision of the Seas, da Royal Caribbean,
achando que ia se divertir pra caramba",
disse A.T., 30. Mas calhou de ele entrar
no navio e topar com 850 religiosos que
ali estavam para fazer um cruzeiro católico. Cotidiano, 24 de janeiro de 2010
A IDEIA DA viagem já surgiu sob
o signo da controvérsia. Ele
queria, como em outros anos,
tirar férias na casa que tinham no litoral paulista; duas semanas lá seriam suficientes para que pudesse se recuperar de um ano estafante. A esposa, porém, não estava de acordo.
"Você descansa, mas eu trabalho",
disse, e de fato, a ela cumpria arrumar a casa, fazer compras, cozinhar.
Tinha uma contraproposta: um cruzeiro marítimo, coisa que nunca haviam feito, e que seria, disso ela tinha certeza, algo surpreendente,
uma experiência completamente
nova. Discutiram muito, mas por
fim ele acabou concordando. Ela
providenciou tudo e no dia marcado
lá estavam eles, a bordo do gigantesco navio de cruzeiro.
Mal começou a viagem ele deu-se
conta de que aquele não seria um
cruzeiro comum. No tombadilho,
havia gente rezando, havia gente
cantando em coro. Não tardou a descobrir: a maioria dos passageiros estava ali participando de um cruzeiro religioso.
A esposa jurou que não sabia desse detalhe. Mas, crente fervorosa,
mostrou-se absolutamente encantada: seria uma oportunidade única
para demonstrar sua fé, e de imediato fez amizade com os coordenadores do programa religioso.
O marido, porém, ficou furioso.
Embora batizado, rotulava-se como
ateu praticante: não rezava, não ia a
igreja. A mulher, compreensiva, evitava brigar com ele por causa disso.
Mas, ponderou, já que o destino
criara aquela oportunidade, o esposo poderia, apenas para satisfazê-la,
participar em alguma atividade,
uma única que fosse. Por exemplo,
assistindo à missa que o padre rezaria no convés.
Ele recusou, irritado. Ficaria no
camarote, lendo. E foi o que fez.
Mas, mesmo com a porta fechada,
ele não pôde deixar de ouvir o sermão. O padre falava sobre o episódio
em que Jesus vai ao barco de seus
discípulos, caminhando sobre as
agitadas águas do mar.
Acabou adormecendo. Sonhou
que estava no convés, anunciando à
mulher e a todos os passageiros ali
reunidos que tinha chegado a seu limite e que estava, literalmente,
abandonando o barco. Feito o pronunciamento, foi até a amurada,
desceu pela escada de cordas por ordem dele ali colocada. Lá embaixo
deveria haver um barco, que ele
igualmente mandara colocar, no
qual se afastaria, remando. Mas, por
alguma razão, não havia barco algum. Hesitou um momento; e aí, para sua própria surpresa, saiu caminhando sobre as ondas.
Nesse momento, a porta do camarote se abriu era a esposa, voltando,
e ele acordou. E, embora não dissesse nada, sentiu que alguma razão ela
tinha: cruzeiros podem às vezes surpreender as pessoas.
MOACYR SCLIAR escreve nesta página, às segundas-feiras, um texto de ficção baseado em notícias publicadas na Folha.
moacyr.scliar@uol.com.br
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