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São Paulo, segunda-feira, 25 de agosto de 2003

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MOACYR SCLIAR

Neutralizando a falsidade

 O relógio Rolex que o ministro José Dirceu (Casa Civil) ganhou de presente do presidente nacional do PTB, José Carlos Martinez, é uma falsificação. Impedido por lei de receber brindes de valor acima de R$ 100, Dirceu havia doado o presente ao Fome Zero, por meio da Caixa Econômica Federal, que atestou que o relógio não era original. Martinez diz que comprou a falsificação de um amigo por R$ 5.000.
Brasil, 21.ago.2003

Você dá de presente um relógio Rolex a um amigo. Por um desses estranhos desígnios do destino, ele descobre que o relógio é falso. Ora, falsidade, ao menos em se tratando de relógios de grife, pode ser uma falta imperdoável. Como saná-la? O que dizer para o perplexo, e agora desconfiado, amigo? Aqui vão quatro sugestões:
1) Use o enfoque filosófico. Diga que, verdadeiro ou falso, qualquer relógio marca o tempo, e que o tempo, independente de relógio, passa inexoravelmente, exigindo que o presenteado medite sobre o sentido da vida. O presenteado poderá alegar, contudo, que o relógio, por ser falsificado, adianta ou atrasa. Tenha prontas respostas para essas duas reclamações. Se o relógio adianta, diga que se trata de uma mensagem: é preciso estar adiante de nosso tempo. Se o relógio atrasa, sustente que se trata igualmente de uma advertência: não devemos nos precipitar, porque, como diz o provérbio, devagar se vai ao longe, e que muita gente já comprou relógio falsificado exatamente por causa da pressa tão característica de nossa época de velocidades exageradas.
2) Dê uma resposta ousada. Diga que você sabia, sim, que o relógio era falsificado e que na verdade o presente representava uma mensagem subliminar: as aparências enganam, nem tudo que brilha é ouro. O Rolex falso pode facilmente ser confundido com o Rolex verdadeiro, da mesma forma como idéias falsas podem ser confundidas com idéias verdadeiras. O seu amigo deveria, portanto, extrair disso uma lição -é preciso estar atento ao mundo em que vivemos porque, a qualquer momento, a armadilha do engano surge à nossa frente, com consequências imprevisíveis.
3) Invente uma história fantástica. Diga que o relógio foi fabricado por um ex-empregado da Rolex, em conflito com a poderosa corporação. Trata-se de um modelo inclusive melhorado; a marca famosa só é mantida por ironia, porque, na verdade, a imitação é muito melhor que o original. Ou seja, seu amigo está recebendo um produto superior, um Rolex muito melhorado, ainda que anônimo (anonimato sendo até prova de caráter).
4) Seja nostálgico. Evoque os bons tempos em que a humanidade vivia sem relógio, em que a marcha do tempo era balizada pela natureza: o nascer e o pôr-do-sol, a sucessão das estações, ou ainda pelos sinos dos mosteiros medievais. Lembre como era calma a vida então, como as pessoas podiam se dedicar com tranquilidade ao estudo e à meditação. Diga que o relógio, na verdade, só trouxe desgraças para as pessoas, obrigando-as a uma pressa que é inevitável inimiga da perfeição. Fale sobre o estresse, que é a tônica de nossa cultura, causando irreparáveis prejuízos ao nosso organismo. Ao final, aceite de volta o Rolex e dê a seu amigo uma ampulheta. Se ele estranhar, diga que de Rolex falsificado se fala muito, até em notícias de jornal, mas que de ampulheta falsificada faz muito tempo que ninguém se queixa.


Moacyr Scliar escreve às segundas-feiras, nesta coluna, um texto de ficção baseado em matérias publicadas no jornal.

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