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MOACYR SCLIAR
Neutralizando a falsidade
O relógio Rolex que o ministro José
Dirceu (Casa Civil) ganhou de presente do presidente nacional do PTB,
José Carlos Martinez, é uma falsificação. Impedido por lei de receber brindes de valor acima de R$ 100, Dirceu
havia doado o presente ao Fome Zero, por meio da Caixa Econômica Federal, que atestou que o relógio não
era original. Martinez diz que comprou a falsificação de um amigo por
R$ 5.000.
Brasil, 21.ago.2003
Você dá de presente um relógio Rolex a um amigo. Por
um desses estranhos desígnios do
destino, ele descobre que o relógio
é falso. Ora, falsidade, ao menos
em se tratando de relógios de grife, pode ser uma falta imperdoável. Como saná-la? O que dizer
para o perplexo, e agora desconfiado, amigo? Aqui vão quatro
sugestões:
1) Use o enfoque filosófico. Diga
que, verdadeiro ou falso, qualquer relógio marca o tempo, e que
o tempo, independente de relógio,
passa inexoravelmente, exigindo
que o presenteado medite sobre o
sentido da vida. O presenteado
poderá alegar, contudo, que o relógio, por ser falsificado, adianta
ou atrasa. Tenha prontas respostas para essas duas reclamações.
Se o relógio adianta, diga que se
trata de uma mensagem: é preciso
estar adiante de nosso tempo. Se o
relógio atrasa, sustente que se trata igualmente de uma advertência: não devemos nos precipitar,
porque, como diz o provérbio, devagar se vai ao longe, e que muita
gente já comprou relógio falsificado exatamente por causa da pressa tão característica de nossa época de velocidades exageradas.
2) Dê uma resposta ousada. Diga que você sabia, sim, que o relógio era falsificado e que na verdade o presente representava uma
mensagem subliminar: as aparências enganam, nem tudo que
brilha é ouro. O Rolex falso pode
facilmente ser confundido com o
Rolex verdadeiro, da mesma forma como idéias falsas podem ser
confundidas com idéias verdadeiras. O seu amigo deveria, portanto, extrair disso uma lição -é
preciso estar atento ao mundo em
que vivemos porque, a qualquer
momento, a armadilha do engano surge à nossa frente, com consequências imprevisíveis.
3) Invente uma história fantástica. Diga que o relógio foi fabricado por um ex-empregado da
Rolex, em conflito com a poderosa corporação. Trata-se de um
modelo inclusive melhorado; a
marca famosa só é mantida por
ironia, porque, na verdade, a imitação é muito melhor que o original. Ou seja, seu amigo está recebendo um produto superior, um
Rolex muito melhorado, ainda
que anônimo (anonimato sendo
até prova de caráter).
4) Seja nostálgico. Evoque os
bons tempos em que a humanidade vivia sem relógio, em que a
marcha do tempo era balizada
pela natureza: o nascer e o pôr-do-sol, a sucessão das estações, ou
ainda pelos sinos dos mosteiros
medievais. Lembre como era calma a vida então, como as pessoas
podiam se dedicar com tranquilidade ao estudo e à meditação. Diga que o relógio, na verdade, só
trouxe desgraças para as pessoas,
obrigando-as a uma pressa que é
inevitável inimiga da perfeição.
Fale sobre o estresse, que é a tônica de nossa cultura, causando irreparáveis prejuízos ao nosso organismo. Ao final, aceite de volta
o Rolex e dê a seu amigo uma ampulheta. Se ele estranhar, diga
que de Rolex falsificado se fala
muito, até em notícias de jornal,
mas que de ampulheta falsificada
faz muito tempo que ninguém se
queixa.
Moacyr Scliar escreve às segundas-feiras, nesta coluna, um texto de ficção baseado em matérias publicadas no jornal.
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