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MASSACRE NO CENTRO
Com traumatismo no crânio e na face, vítima afirma que não teve tempo para identificar agressores
Morador de rua diz que foi atacado por grupo
FABIO SCHIVARTCHE
DA REPORTAGEM LOCAL
O olho esquerdo está roxo e fechado. A boca não tem dentes. O
braço, ligado ao soro, fica permanentemente amarrado à cama, assim como as pernas. E a tosse não
cessa um minuto.
Com afundamento de crânio,
José Manuel da Cruz, um dos moradores de rua agredidos no centro de São Paulo na semana passada, afirma, num fio de voz: "Eram
umas dez pessoas. E usaram um
pau grande".
O olho direito, aberto, fica marejado. Ele se revira na cama do
quarto 514, no quinto andar do
Hospital Municipal Ermelino Matarazzo, na zona leste da cidade,
para onde foi levado na madrugada da última quinta-feira.
A Folha esteve no hospital na
tarde de ontem e conversou com
exclusividade com duas das vítimas da chacina, que deixou seis
moradores de rua mortos e nove
feridos, todos hospitalizados. Na
portaria do hospital, a reportagem se apresentou como parente
de uma das vítimas.
Sem apresentar nenhum documento, subiu direto para o quinto
andar, enquanto a funcionária da
recepção verificava a lista de pacientes. Não havia reforço na segurança nem algum tipo de vigilância especial.
Com traumatismos no crânio e
na face, ainda muito tensos, eles
não correm mais risco de morte,
segundo a equipe médica do hospital. Nem mesmo aos investigadores, que os visitaram no início
da tarde, eles deram detalhes da
cena do crime. Mas contaram a
sua versão dos fatos.
Com muitas dificuldades para
falar, Cruz, que tem lábio leporino, conta que não teve tempo para identificar os agressores. Como
foi tudo muito rápido e estava escuro, tem dificuldade para descrevê-los. "Mas não vi tatuagens.
E não vi nenhum careca."
Essas características são próprias de grupos neonazistas e de
skinheads, que, segundo uma das
linhas de investigação policial,
podem ser os autores do crime.
Gaguinho
Cruz afirma ser natural do Rio
de Janeiro. Teria vindo para a capital paulista em 1970. Diz que
tem 49 anos e que seu apelido é
"Gaguinho". Cabelo grisalho,
aparenta um pouco mais.
Ele está muito magro. Veste um
avental branco com fendas nas laterais. Debaixo da cama, a sonda
está cheia.
Ele foi sedado e preso à cama
com ataduras porque estava muito agitado. Os médicos temiam
que ele se machucasse. Mesmo
atado, revira-se constantemente
de um lado para o outro, ficando
por vezes com parte do corpo inclinado para fora do colchão.
Ao seu lado está Edebrando de
Oliveira, 73 anos, que não tem nenhuma ligação com a chacina e só
está à espera de uma cirurgia no
intestino. Ele comenta: "Hoje ele
já está falando melhor. Até ontem
era impossível entendê-lo".
Edebrando é religioso. Vê o passar das horas lendo trechos da bíblia e ouvindo musicas e a pregação de pastores evangélicos no radinho que trouxe para lhe fazer
companhia no hospital.
Ao som dos hinos religiosos e
olhando pela janela para as centenas de casinhas que se abrem no
horizonte da zona leste, Cruz lamenta sua trajetória: "Queria trabalhar e viver. Mas quase morri
por aqui." E afirma ter uma certeza: "Se ficar bom, quero sair de
São Paulo."
No quarto ao lado está Messias
Rodrigues Moreira, outro dos 15
moradores de rua agredidos. Faltam-lhe os dois dentes da frente,
mas lhe sobra disposição para
conversar -e sorrir.
Conta que morava em Atibaia,
cidade do interior de São Paulo, e
que veio para a capital "porque é
bem melhor, mesmo na rua, e
porque tem emprego".
Questionado sobre o dia da chacina, no entanto, confunde-se.
"Eu estava num posto de gasolina
indo para Atibaia quando três homens voaram sobre mim. Eles
acharam que eu estava cantando
uma menina. Um deles quebrou
uma vassoura na minha cabeça. E
dói tanto!", afirmou à Folha.
Parentes que estiveram com ele
nos últimos dias relataram que ele
tem contado a mesma história,
provavelmente misturando cenas
da chacina com ficção.
Moreira, recolhido na manhã de
quinta na rua XV de Novembro,
chegou ao hospital ainda consciente. Disse para os médicos que
estava dormindo e que não se
lembra do que aconteceu.
Ele sofreu uma fratura do lado
direito da face. Com cerca de 15
centímetros de pontos na cabeça e
reclamando de dores e de um
zumbido constante no ouvido direito, ele alterna as conversas com
minutos de silêncio, durante os
quais passa as mãos vagarosamente pela roupa branca que lhe
deram no hospital.
Vestido com camisa e calça cedidos pelo hospital, Moreira parecia estar incomodado com a temperatura do quarto, que tem teto
de concreto. Enquanto falava, cobria-se com uma manta até a cabeça, para depois desenrolá-la.
Na tarde de ontem, vomitou depois do almoço. Mas, para as enfermeiras que lhe visitavam, pedia
mais comida. E sorria.
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