São Paulo, segunda-feira, 25 de setembro de 2000

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

MOACYR SCLIAR

Noites olímpicas

 Para assistir à Olimpíada, torcedor passa a madrugada vendo TV. Sydney 2000, 21.set. 2000

Ele era apaixonado por esporte. Ela odiava esporte. Não era o único motivo de conflito conjugal, mas era particularmente preocupante: quando ele anunciou a disposição de ver a Olimpíada pela TV, ela teve um ataque de fúria: trabalhava todo o dia e não podia perder preciosas horas de sono por causa de algo que em absoluto lhe interessava. Acabaram chegando a um acordo: ele não veria TV no quarto, como estava habituado a fazer. Usaria o pequeno, precário televisor da sala.
E, assim, armado com uma térmica cheia de café forte, começou a ver a competição. Ficava horas grudado à telinha. De vez em quando, levantava-se, ia à janela para respirar um pouco de ar fresco. E então descobriu que não era o único a acompanhar a competição: sua vizinha da frente também o fazia. Ele mal a conhecia; vira-a algumas vezes, uma moça muito bonita, mas nem sabia seu nome. Contudo ela também vinha à janela e lhe fazia sinais amistosos. Logo estavam trocando comentários sobre os jogos através do telefone. Uma noite, convidou-o para lhe fazer companhia.
Os Jogos Olímpicos foram esquecidos. Esquecidos propriamente não: passaram a funcionar como uma espécie de código para as brincadeiras que faziam na cama. Vamos agora para o torneio de judô, dizia ele, e ela aceitava o desafio, rindo muito.
A esposa de nada desconfiava. Ao contrário, até o elogiava: ele conseguia assistir à TV quase sem fazer barulho. É que estou usando fones de ouvido, explicou.
A alegria dele terminou de forma inesperada. Uma manhã ela lhe perguntou quem tinha vencido a prova de saltos ornamentais. De início ficou surpreso: mas você não se interessa por isso, disse. Ela se interessava, sim: tinha praticado salto ornamental na infância, sabia o nome de todos os competidores.
Ele não. Nada sabia a respeito. Hesitou muito e acabou dizendo que adormecera justamente durante aquela prova.
-Mas, se você vai dormir na frente do televisor -disse ela-, então durma na cama.
Ele não teve argumentos para responder. E, assim, naquela mesma noite voltou ao quarto do casal. Como um atleta que, miseravelmente derrotado numa prova em que era o favorito, regressa, tristonho, a seu país.


O escritor Moacyr Scliar escreve nesta coluna, às segundas-feiras, um texto de ficção baseado em notícias publicadas no jornal.

Texto Anterior: Ambiente determina sobrevivência
Próximo Texto: Há 50 anos
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.