|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
MOACYR SCLIAR
Os perigos do almoçomício
Carne com molho especial, que levaria o nome do candidato e que seria servido em potes com a foto dele
|
Ministério Público Eleitoral do Amapá
entra com representação contra almoçomícios. Segundo o órgão, os almoçomícios foram realizados na periferia de Macapá, atraindo "pessoas humildes, adultos e crianças, os quais tiveram, em troca
do voto, almoço garantido".
Brasil, 19 de setembro
O CANDIDATO tinha um assessor e o assessor tinha costas
largas: funcionava como saco
de pancadas, como bode expiatório.
Era nele que o candidato descarregava suas frustrações. Que não eram
poucas. Porque o candidato estava
se saindo mal na campanha, muito
mal: tudo indicava que sofreria uma
derrota fragorosa, uma derrota capaz de acabar, para sempre, com sua
carreira. E o culpado era, claro, o assessor. Eu pago a você, dizia o candidato, pago muito bem para você me
conseguir votos, e você não consegue nada, você é um incompetente,
um fracassado.
O assessor, homem paciente e resignado, ouvia os desaforos sem responder. Mas desesperava-se: o que é
que eu vou fazer, perguntava-se, para este diabo ser eleito? Problema
que ele confidenciava à esposa, mulher calma, tolerante. E foi ela, excelente cozinheira, quem lhe deu a
idéia: organizar um almoçomício.
Um grande almoço, aberto para todos, sobretudo para a gente pobre.
Iniciativa que poderia render muitos votos.
Almoçomício, nisso o assessor não
tinha pensado. Excelente proposta:
boca-livre sempre atrai as pessoas,
sobretudo a pobreza. O almoçomício poderia ser um grande evento, o
evento que marcaria a sensacional
virada na trajetória do candidato. E
nem precisaria ser uma coisa muito
cara. O cardápio, que discutiu com a
esposa, constaria de feijão, arroz,
uma carne com molho. Molho, nisto
ela insistiu: seria o componente
mais importante, o diferencial. Um
molho especial, que levaria o nome
do candidato e que seria servido em
potes com a foto dele.
O assessor submeteu o projeto ao
candidato que, ainda desconfiado,
resolveu aceitar, desembolsando a
soma necessária. Mas advertiu: trate
de fazer essa coisa dar certo.
- Caso contrário, você já sabe: está
despedido.
O assessor pôs mãos à obra. Arranjou um local, um enorme salão
de festas, contratou duas senhoras
para ajudar a esposa na preparação
do almoçomício. Um carro de som
percorria a cidade, especialmente os
bairros pobres, convidando para
aquilo que ele já batizara de festança
da vitória.
Veio o grande dia, e o próprio assessor estava lá, na porta do salão.
Conferia os títulos eleitorais, anotava os nomes e lembrava: não esqueçam de votar em nosso candidato.
Que, sentado à cabeceira da comprida mesa, sorria para todos. Levantou-se, fez o seu discurso, foi muito
aplaudido. Enfim, um sucesso.
Dois dias a notícia estava na primeira página do jornal local: "Almoçomício leva dezenas para o hospital". Intoxicação alimentar generalizada, segundo os médicos que atendiam os pacientes. E a causa não tardou a ser identificada: uma bactéria.
Que estava, claro, no molho. O molho com o nome do candidato.
Doentes, as pessoas não puderam
votar. O candidato perdeu, o assessor ficou sem o cargo que sempre almejara. Apesar de tudo, continua fã
da comida da esposa. A carne que ela
prepara é ótima. Mas, por via das dúvidas, ele a come sem molho.
MOACYR SCLIAR escreve, às segundas-feiras, um texto
de ficção baseado em notícias publicadas na Folha
Texto Anterior: Memória: Frase de reitor de Harvard foi alvo de ataques Próximo Texto: Há 50 anos Índice
|