São Paulo, segunda-feira, 25 de setembro de 2006

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MOACYR SCLIAR

Os perigos do almoçomício


Carne com molho especial, que levaria o nome do candidato e que seria servido em potes com a foto dele


 

Ministério Público Eleitoral do Amapá entra com representação contra almoçomícios. Segundo o órgão, os almoçomícios foram realizados na periferia de Macapá, atraindo "pessoas humildes, adultos e crianças, os quais tiveram, em troca do voto, almoço garantido".
Brasil, 19 de setembro

O CANDIDATO tinha um assessor e o assessor tinha costas largas: funcionava como saco de pancadas, como bode expiatório. Era nele que o candidato descarregava suas frustrações. Que não eram poucas. Porque o candidato estava se saindo mal na campanha, muito mal: tudo indicava que sofreria uma derrota fragorosa, uma derrota capaz de acabar, para sempre, com sua carreira. E o culpado era, claro, o assessor. Eu pago a você, dizia o candidato, pago muito bem para você me conseguir votos, e você não consegue nada, você é um incompetente, um fracassado.
O assessor, homem paciente e resignado, ouvia os desaforos sem responder. Mas desesperava-se: o que é que eu vou fazer, perguntava-se, para este diabo ser eleito? Problema que ele confidenciava à esposa, mulher calma, tolerante. E foi ela, excelente cozinheira, quem lhe deu a idéia: organizar um almoçomício.
Um grande almoço, aberto para todos, sobretudo para a gente pobre. Iniciativa que poderia render muitos votos. Almoçomício, nisso o assessor não tinha pensado. Excelente proposta: boca-livre sempre atrai as pessoas, sobretudo a pobreza. O almoçomício poderia ser um grande evento, o evento que marcaria a sensacional virada na trajetória do candidato. E nem precisaria ser uma coisa muito cara. O cardápio, que discutiu com a esposa, constaria de feijão, arroz, uma carne com molho. Molho, nisto ela insistiu: seria o componente mais importante, o diferencial. Um molho especial, que levaria o nome do candidato e que seria servido em potes com a foto dele.
O assessor submeteu o projeto ao candidato que, ainda desconfiado, resolveu aceitar, desembolsando a soma necessária. Mas advertiu: trate de fazer essa coisa dar certo. - Caso contrário, você já sabe: está despedido.
O assessor pôs mãos à obra. Arranjou um local, um enorme salão de festas, contratou duas senhoras para ajudar a esposa na preparação do almoçomício. Um carro de som percorria a cidade, especialmente os bairros pobres, convidando para aquilo que ele já batizara de festança da vitória.
Veio o grande dia, e o próprio assessor estava lá, na porta do salão. Conferia os títulos eleitorais, anotava os nomes e lembrava: não esqueçam de votar em nosso candidato. Que, sentado à cabeceira da comprida mesa, sorria para todos. Levantou-se, fez o seu discurso, foi muito aplaudido. Enfim, um sucesso.
Dois dias a notícia estava na primeira página do jornal local: "Almoçomício leva dezenas para o hospital". Intoxicação alimentar generalizada, segundo os médicos que atendiam os pacientes. E a causa não tardou a ser identificada: uma bactéria.
Que estava, claro, no molho. O molho com o nome do candidato. Doentes, as pessoas não puderam votar. O candidato perdeu, o assessor ficou sem o cargo que sempre almejara. Apesar de tudo, continua fã da comida da esposa. A carne que ela prepara é ótima. Mas, por via das dúvidas, ele a come sem molho.


MOACYR SCLIAR escreve, às segundas-feiras, um texto de ficção baseado em notícias publicadas na Folha


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