|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
REFERENDO
Para Luiz Carlos dos Santos, do movimento pela paz na zona sul, resultado na região reflete convívio com a violência
"Sim" foi grito de socorro, diz líder no Grajaú
GILMAR PENTEADO
DA REPORTAGEM LOCAL
Um dos principais líderes da
campanha que conseguiu a maior
vitória do "sim" na cidade de São
Paulo convive diariamente com
armas de fogo, apesar de nunca
ter portado uma.
Morador do extremo sul, com
dois irmãos mortos a tiros, líder
comunitário acostumado a retirar
do bairro famílias ameaçadas de
morte, Luiz Carlos dos Santos, 49,
acredita que a vitória na zona eleitoral do Grajaú -51,22% votaram pelo "sim"- seja um grito
de socorro da população contra
esse mesmo convívio forçado.
Segundo ele, a recusa às armas
na região onde mais se mata em
São Paulo só foi motivo de surpresa porque a periferia foi esquecida
no debate do referendo. Grajaú é
líder no ranking de homicídios,
com 1.900 mortes de 1999 a 2004.
"Aqui você pode reagir e até matar o bandido, mas outros da mesma gangue vão voltar no dia seguinte para se vingar", afirmou
Santos, coordenador do movimento Atitude pela Paz.
Folha - Por que o "sim" venceu só
nas áreas de maior violência?
Luiz Carlos dos Santos - Porque
aqui as pessoas estão cansadas
dessa grande taxa de homicídios.
Folha - Mas outras áreas também
sentem o efeito da violência, e o
"não" venceu.
Santos - Nas áreas nobres, os
moradores acreditam na segurança privada. Mas aqui, na periferia,
andar armado não resolve o problema. Aqui, o cidadão de bem
que anda armado causa mais problemas para a sua família.
Folha - A ameaça da arma é diferente no lado pobre e no lado rico?
Santos - Completamente diferente. Aqui, as pessoas do bem e
do mal vivem muito próximas,
são vizinhas. Ter uma arma, ou se
defender de qualquer ataque [de
criminosos], traz o risco posterior. Muitas vezes, a família pode
ser obrigada a sair do bairro.
Folha - Como assim?
Santos - Aqui existem gangues,
os criminosos não agem sozinhos. Se você reage a um assalto,
essa gangue vai te expulsar do
bairro. Se você mata um assaltante, no dia seguinte você tem de
sair porque não terá mais sossego.
Folha - O sr. já acompanhou muitas histórias assim?
Santos - Eu tive de tirar muitas
famílias do bairro, até por besteira. Teve um caso em que um pai
de família tentou colocar o carro
na garagem e tinha um monte de
jovens sentados na frente da casa
e daí surgiu uma encrenca. Ele teve de sair do bairro porque iria
morrer. As pessoas de bem sabem
que, na periferia, uma arma não é
bom negócio para a sua família.
Folha - O resultado de uma reação, mesmo que com êxito, pode
trazer um prejuízo muito maior?
Santos - Pode ser bem pior. Naquele momento, você pode até
evitar. Pode até matar um bandido. Mas os outros vão voltar no
dia seguinte e vão te matar ou fazer você sair do bairro. Aqui, a referência para os jovens são as armas, as drogas. Não há a presença
do Estado, não há a referência do
belo. Só tem a referência do feio.
Aqui, a maioria teve experiências
trágicas com a violência.
Folha - O sr. mesmo teve essa experiência, não?
Santos - Eu tive dois irmãos assassinados em assaltos [em 1985 e
em 1995]. Minha mãe, aos 75
anos, teve uma arma apontada
para o peito em um domingo de
manhã, quando ia à feira. E o pior
é que o ladrão era um vizinho.
Folha - E vocês o denunciaram?
Santos - Aqui é outro mundo, é
outra realidade. É a lei da sobrevivência. É claro que nós não registramos queixa na polícia.
Folha - Por quê?
Santos - Na periferia, ou você resolve as coisas conversando ou
você esquece e passa por cima. Se
for à delegacia e a polícia não resolver, você também está arrumando encrenca. Essa é outra lei
da periferia. Ou você fica quieto
ou resolve com jogo de cintura.
Folha - O sr. já resolveu problemas dessa forma?
Santos - Já intermediei encrencas de muita gente.
Folha - O sr. virou um negociador
entre moradores e criminosos?
Santos - De uma certa forma.
Por semana, resolvo uma ou duas
encrencas que envolvem ameaças. A gente procura dizer que a
pessoa [ameaçada] é trabalhadora, que foi um mal-entendido, se é
possível deixar a família em paz.
Folha - Durante a campanha, surgiram insinuações de que o crime
organizado estaria arregimentando votos para o "sim" para se beneficiar com isso.
Santos - As pessoas escolheram
de livre e espontânea vontade. E,
para o pessoal do crime, tanto faz.
Eles vão continuar armados, matando e roubando. Para eles, tanto
faz a pessoa estar armada ou não.
E, para atirar, o bandido não pensa duas vezes.
Folha - No que a frente do "sim"
errou?
Santos - O que faltou foi uma
propaganda mais eficaz do pessoal do "sim". Faltou dar voz às lideranças da periferia. Os vereadores, que tantos votos pegam na região, também lavaram as mãos.
Folha - O sr. comemorou o resultado na região?
Santos - A gente ficou feliz, porque também é o reconhecimento
do trabalho das entidades. Mas
não dá para comemorar porque
foi uma gota no oceano. E é a periferia que sempre perde. Em cada
derrota da democracia e da segurança, na ausência do Estado, é a
periferia que sempre perde, e perde feio. O pobre é um eterno refém político.
Texto Anterior: Há 50 anos: Região do Sarre rejeita autonomia Próximo Texto: Referendo: "Não" cogita cobrar dívida de fábrica de arma Índice
|