São Paulo, terça-feira, 25 de outubro de 2005

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REFERENDO

Para Luiz Carlos dos Santos, do movimento pela paz na zona sul, resultado na região reflete convívio com a violência

"Sim" foi grito de socorro, diz líder no Grajaú

GILMAR PENTEADO
DA REPORTAGEM LOCAL

Um dos principais líderes da campanha que conseguiu a maior vitória do "sim" na cidade de São Paulo convive diariamente com armas de fogo, apesar de nunca ter portado uma.
Morador do extremo sul, com dois irmãos mortos a tiros, líder comunitário acostumado a retirar do bairro famílias ameaçadas de morte, Luiz Carlos dos Santos, 49, acredita que a vitória na zona eleitoral do Grajaú -51,22% votaram pelo "sim"- seja um grito de socorro da população contra esse mesmo convívio forçado.
Segundo ele, a recusa às armas na região onde mais se mata em São Paulo só foi motivo de surpresa porque a periferia foi esquecida no debate do referendo. Grajaú é líder no ranking de homicídios, com 1.900 mortes de 1999 a 2004. "Aqui você pode reagir e até matar o bandido, mas outros da mesma gangue vão voltar no dia seguinte para se vingar", afirmou Santos, coordenador do movimento Atitude pela Paz.
 

Folha - Por que o "sim" venceu só nas áreas de maior violência?
Luiz Carlos dos Santos -
Porque aqui as pessoas estão cansadas dessa grande taxa de homicídios.

Folha - Mas outras áreas também sentem o efeito da violência, e o "não" venceu.
Santos -
Nas áreas nobres, os moradores acreditam na segurança privada. Mas aqui, na periferia, andar armado não resolve o problema. Aqui, o cidadão de bem que anda armado causa mais problemas para a sua família.

Folha - A ameaça da arma é diferente no lado pobre e no lado rico?
Santos -
Completamente diferente. Aqui, as pessoas do bem e do mal vivem muito próximas, são vizinhas. Ter uma arma, ou se defender de qualquer ataque [de criminosos], traz o risco posterior. Muitas vezes, a família pode ser obrigada a sair do bairro.

Folha - Como assim?
Santos -
Aqui existem gangues, os criminosos não agem sozinhos. Se você reage a um assalto, essa gangue vai te expulsar do bairro. Se você mata um assaltante, no dia seguinte você tem de sair porque não terá mais sossego.

Folha - O sr. já acompanhou muitas histórias assim?
Santos -
Eu tive de tirar muitas famílias do bairro, até por besteira. Teve um caso em que um pai de família tentou colocar o carro na garagem e tinha um monte de jovens sentados na frente da casa e daí surgiu uma encrenca. Ele teve de sair do bairro porque iria morrer. As pessoas de bem sabem que, na periferia, uma arma não é bom negócio para a sua família.

Folha - O resultado de uma reação, mesmo que com êxito, pode trazer um prejuízo muito maior?
Santos -
Pode ser bem pior. Naquele momento, você pode até evitar. Pode até matar um bandido. Mas os outros vão voltar no dia seguinte e vão te matar ou fazer você sair do bairro. Aqui, a referência para os jovens são as armas, as drogas. Não há a presença do Estado, não há a referência do belo. Só tem a referência do feio. Aqui, a maioria teve experiências trágicas com a violência.

Folha - O sr. mesmo teve essa experiência, não?
Santos -
Eu tive dois irmãos assassinados em assaltos [em 1985 e em 1995]. Minha mãe, aos 75 anos, teve uma arma apontada para o peito em um domingo de manhã, quando ia à feira. E o pior é que o ladrão era um vizinho.

Folha - E vocês o denunciaram?
Santos -
Aqui é outro mundo, é outra realidade. É a lei da sobrevivência. É claro que nós não registramos queixa na polícia.

Folha - Por quê?
Santos -
Na periferia, ou você resolve as coisas conversando ou você esquece e passa por cima. Se for à delegacia e a polícia não resolver, você também está arrumando encrenca. Essa é outra lei da periferia. Ou você fica quieto ou resolve com jogo de cintura.

Folha - O sr. já resolveu problemas dessa forma?
Santos -
Já intermediei encrencas de muita gente.

Folha - O sr. virou um negociador entre moradores e criminosos?
Santos -
De uma certa forma. Por semana, resolvo uma ou duas encrencas que envolvem ameaças. A gente procura dizer que a pessoa [ameaçada] é trabalhadora, que foi um mal-entendido, se é possível deixar a família em paz.

Folha - Durante a campanha, surgiram insinuações de que o crime organizado estaria arregimentando votos para o "sim" para se beneficiar com isso.
Santos -
As pessoas escolheram de livre e espontânea vontade. E, para o pessoal do crime, tanto faz. Eles vão continuar armados, matando e roubando. Para eles, tanto faz a pessoa estar armada ou não. E, para atirar, o bandido não pensa duas vezes.

Folha - No que a frente do "sim" errou?
Santos -
O que faltou foi uma propaganda mais eficaz do pessoal do "sim". Faltou dar voz às lideranças da periferia. Os vereadores, que tantos votos pegam na região, também lavaram as mãos.

Folha - O sr. comemorou o resultado na região?
Santos -
A gente ficou feliz, porque também é o reconhecimento do trabalho das entidades. Mas não dá para comemorar porque foi uma gota no oceano. E é a periferia que sempre perde. Em cada derrota da democracia e da segurança, na ausência do Estado, é a periferia que sempre perde, e perde feio. O pobre é um eterno refém político.


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