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São Paulo, terça-feira, 25 de novembro de 2003

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RIO

Nem gás lacrimogêneo impediu que, pelo segundo dia, moradores de morros do Rio revirassem escombros da Ceasa atrás de alimentos

PM não consegue deter 2 mil saqueadores

Ana Carolina Fernandes/Folha Imagem
As gêmeas Janir (à esq.) e Janair preparam a primeira refeição completa que fizeram em 37 horas com comida retirada da Ceasa


FERNANDA DA ESCÓSSIA
DA SUCURSAL DO RIO

Depois de 37 horas sem uma refeição, as gêmeas Janir e Janair Oliveira da Rocha, 22, almoçaram ontem aquilo que conseguiram garimpar nos escombros do incêndio da Ceasa (Centrais de Abastecimento do Estado do Rio de Janeiro), no Rio de Janeiro: arroz, salsicha, feijão e café.
Vendedoras de bijuteria no centro da cidade, as duas cataram comida desde domingo de manhã, quando, sem nada na geladeira (que serve também de despensa do barraco), souberam do incêndio, iniciado no sábado.
As irmãs entraram sob os escombros, inclusive de madrugada, e apanharam o que puderam. Comeram uma manga doada por um comerciante e beberam água do caminhão do Corpo de Bombeiros. Dormiram na Ceasa com outros catadores. Ontem, pelo segundo dia seguido, cerca de 2.000 pessoas cercaram os 20 boxes incendiados para retirar alimento.
Com o fim do incêndio, foi um dia de tumultos, em que a Polícia Militar usou gás lacrimogêneo para tentar, sem sucesso, isolar a área. Há risco de desabamento.
A toda hora os catadores rompiam o precário isolamento, feito apenas com fitas, e eram expulsos pelos PMs. Por volta das 14h30, a tensão explodiu em gritos, frutas podres e pedras atirados contra os policiais. Às 16h, novo tumulto: um segurança da Ceasa resolveu vender a R$ 1 sacos de 20 kg de batata retirados do lixo. Um tiro foi disparado. A PM interveio: achou-se a arma; o atirador, não.
"Virou garimpo urbano", resume Waldir de Lemos, da Associação Comercial dos Produtores e Usuários da Ceasa, que estima R$ 5 milhões de prejuízo. Waldério Borges disse que, de sua loja, foram levados cheques e dinheiro.
Como as gêmeas Janir e Janair, os demais "garimpeiros" são pobres, desempregados ou subempregados, quase todos negros e moradores de favelas e morros próximos à Ceasa, em Irajá (zona norte do Rio). Há uma visível maioria de mulheres, que levam a família para ajudar no garimpo.
"A gente não tem medo de comer nada estragado, não. O negócio é encher a barriga, ruim é ficar de barriga vazia", disse a desempregada Kátia Regina Andrade, 27, que votou em Luiz Inácio Lula da Silva e considera "esse Fome Zero" bom. "Mas precisa chegar aqui pra gente ver."
Raquel Graciano de Souza, 24, levou a filha Raiane, 6, que faltou à escola para ajudar na procura. "Hoje a aula é aqui, é aula da vida", afirmou a mãe. Grávida de três meses, Jerusa de Souza, 25, pegou óleo e macarrão com a ajuda do filho Gabriel, 5, empolgado ao descobrir salsicha e leite condensado entre os destroços.
Janir e Janair voltaram para casa empurrando um carrinho de mão com sacos e latas furados, amassados, cobertos de fuligem e cinza: 20 quilos de arroz, 20 de açúcar, dois de feijão, dez de café, 48 latas de óleo e oito vidros de maionese, mais salsicha e ervilha.
Tudo foi lavado com detergente e colocado na geladeira. A filha de Janir, Karen, 4, ajudou no serviço. A menina saiu da escola há seis meses porque a mãe não pode pagar a mensalidade (R$ 65).
As três almoçaram sem medo de passar mal com a comida queimada. Janir não liga: "No outro incêndio, disseram que fazia mal. Comi e tô viva, não tô? Todo incêndio é a mesma coisa. A gente quer comida, quer emprego".
Por volta das 18h, a Ceasa liberou a área para catadores. O incêndio de sábado foi o segundo no ano e o quarto desde julho de 2001. Procurado, o presidente da Ceasa, coronel Paulo Gomes, não foi encontrado ontem.


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