UOL


São Paulo, quinta-feira, 25 de dezembro de 2003

Próximo Texto | Índice

CIDADANIA

Cidade tem 3% da população em locais sem registro oficial, que conta com a boa vontade dos servidores dos Correios

Carteiro acha 313 mil sem-endereço em SP

Antônio Gaudério/Folha Imagem
O carteiro Maurício Santos Lopes em uma das vielas da maior favela de São Paulo, Heliópolis, onde vivem cerca de 100 mil pessoas


CHICO DE GOIS
DA REPORTAGEM LOCAL

Sob um sol de 32 graus e com uma mochila com sete quilos nos ombros, Maurício Santos Lopes, 22, desce a ladeira da favela Heliópolis, na zona sul de São Paulo. "Tem alguma coisa para mim?", pergunta, logo na entrada da favela, uma moradora. "Hoje não", responde Lopes. "Ainda não foi desta vez que sua mãe mandou a foto que você espera." Mesmo assim, a moradora não desanima. "Quem sabe amanhã, né?"
Ele conta que há um mês a moradora aguarda uma foto da mãe, que mora na Bahia, e não a vê há anos. "Todo dia ela faz a mesma pergunta; eu queria ajudar, mas, neste caso, não tem como."
Lopes é conhecido e respeitado na favela. Não é líder comunitário, muito menos policial ou alguma autoridade. É carteiro há apenas seis meses, mas é como se tivesse nascido no lugar, apesar de sua casa ficar a duas horas e meia de ônibus dali, em Interlagos.
Graças a profissionais como ele, as correspondências chegam aos sem-endereço da cidade. De acordo com o diretor-regional adjunto dos Correios em São Paulo, Kleber dos Santos Ferreira, 97% da população paulistana é atendida pela distribuição. Como a cidade tem mais de 10 milhões de habitantes, é como se cerca de 313 mil não tivessem endereço.
Pelos critérios dos Correios, as correspondências são entregues apenas em ruas oficializadas. Porém, mesmo em locais como Heliópolis, onde a maioria dos logradouros não é oficial, a carta é entregue por causa da boa vontade dos carteiros.
Em outras áreas, como Engenheiro Marsilac, extremo sul da cidade, para facilitar a vida dos moradores e dos profissionais os Correios criaram as caixas postais comunitárias. Cerca de 70 mil pessoas utilizam esse serviço.

Memória
A favela Heliópolis é a maior da cidade, com cerca de 100 mil habitantes. A numeração irregular das casas dificulta ainda mais o trabalho dos carteiros. É comum o número 20 ser vizinho do 57, que, por sua vez, fica ao lado do 12.
Apesar da pouca experiência na função e no bairro, onde as ruas têm o nome que os moradores dão (algumas simplesmente chamadas de viela 1 ou 2), Lopes tem o mapa do lugar em sua cabeça.
"Esta aqui é a travessa 1. No final, fica a rua Maciel Parente. Depois começam as vielas", explica para a reportagem da Folha, que o acompanha na missão de levar cartas, cartões, propagandas, cobranças, notícias boas e ruins a uma população que vê o carteiro como alguém da casa, um profissional confiável a ponto de permitir que entre em seu quintal ou até mesmo dentro da casa.
Neste tempo em que trabalha em Heliópolis, Lopes aprendeu a ler a caligrafia dos remetentes e os sinais da favela. "Sexta-feira mataram um aqui", diz ao apontar para o chão diante de um barraco. "Hoje está meio parado, deve ter acontecido algo porque também tem pouca criança circulando."
Em alguns casos, uma moradora ou o proprietário de um bar fica responsável por receber a correspondência dos vizinhos e amigos. Damiana Almeida, 41, há 14 anos em São Paulo (8 dos quais em Heliópolis), é uma espécie de auxiliar de carteiro. Sua casa, na viela Frei Damião, é o endereço para outras dez pessoas. "Tem gente que mora nos fundos da viela e dá meu endereço para correspondência."

Ajudantes
O mesmo acontece com José Gracione de Abreu, 37. Dono de um bar na mesma viela de Damiana, o paraibano de Cajazeiras está em São Paulo há 17 anos e há 14 mora na favela. "Às vezes recebo cartas para pessoas que nem sei quem são, mas depois o dono da correspondência me procura e eu entrego o material."
Abreu é só elogios para o carteiro Lopes. "Ele faz o serviço direitinho." Porém, Lopes deve perder seu auxiliar em janeiro. Abreu já vendeu o bar e a casa e vai de mudança com a mulher e os dois filhos para Campina Grande (PB).
O gerente do Centro de Distribuição Domiciliar do Ipiranga, Carlos Alberto Silva Moura, 47, funcionário dos Correios há 16 anos, disse que o outro carteiro que trabalhava em Heliópolis foi transferido para outra área a contragosto dos moradores. "Depois que saiu, tinha gente que ligava aqui na agência perguntando por ele", diz Moura.
Por ser uma área considerada "diferente" pelos servidores dos Correios, em Heliópolis, quando um carteiro sai ou entra em férias, o funcionário tem de apresentar o substituto para a comunidade "para não ter problemas", explica o gerente do centro distribuidor.
A experiência fez de Moura uma espécie de sociólogo. Dos 16 anos em que trabalha nos Correios, 4 foram na região de Moema. "Tem muita diferença entre as correspondências recebidas pelos moradores de Heliópolis e pelos de Moema", analisa.

Propaganda
Na favela, afirma ele, o material mais comum são cartas de parentes, propagandas de empresas de celular, carnês de lojas de móveis e eletrodomésticos.
No bairro nobre da zona sul, o número de cartas caiu com o advento da internet. Além disso, são comuns correspondências de cartões de crédito, talões de cheque, entregas de encomendas e cartões postais do exterior.
Alheio às diferenças culturais e financeiras dos destinatários, Lopes continua seu serviço em Heliópolis. Depois de mais de uma hora de caminhada entre esgoto a céu aberto, sol a pino, entra e sai de vielas sob o olhar atento de cachorros, que já se tornaram amigos, Lopes termina a primeira parte da entrega das correspondências que trouxe.
A jornada, porém, ainda não acabou. Outros sete quilos de correspondência ainda o aguardam para a segunda parte da entrega.
Depois de percorrer por mais de três horas a favela, ele ainda vai ter de enfrentar uma viagem de duas horas e meia de ônibus até Interlagos, onde mora. As dificuldades unem a comunidade e o carteiro. "Eu adoro trabalhar neste lugar."


Próximo Texto: Associações pedem caixas comunitárias
Índice

UOL
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.