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ILHA DA FANTASIA
Sem-teto usa apenas um tipo de caneta e de papel e lembra a obra "O Pensador", de Rodin, ao escrever
Metódico, Raimundo encaderna seus textos
DA REPORTAGEM LOCAL
O sem-teto Raimundo Arruda
Sobrinho, 67, que escreve textos
literários e assina "O Condicionado", tem um método rigoroso. Só
calca suas canetas, que devem ser
da marca Bic, tinta preta ou azul,
em folhas de papel sulfite brancas
e pautadas, tamanho padrão, que
compra soltas, na papelaria. "A
caneta custa R$ 0,58, mas a tinta
dura pouco, ou escreveria mais."
Escreveria o quê? Textos como
"(O Maior Casamento na Ciência) é o do Pensamento com a Eletrônica. Ambos, abstratos. Só a
Eletrônica pôde fazer a grandeza
da Psiquiatria, que é pensamento.
E este, é o responsável por toda a
Civilização." Raimundo controla
todas as etapas da produção: cria,
escreve, costura os pedaços de papel, geralmente quartos da sulfite
que formam livretes, e os dá (leia
trechos nesta página).
Mas também relatórios. Quem
passa pela avenida, com visão melhor se na direção Lapa-Pinheiros, o verá no canto inferior direito, sentado sobre um caixote de
madeira, as pernas cruzadas, a
mão esquerda à cabeça, a mão direita segurando a Bic, o maço de
papéis em seu colo esperando as
idéias. Pela pose, é impossível não
pensar no "Pensador" de Rodin.
Pelo aspecto visual, porém, outra figura histórica vem à cabeça:
Antônio Conselheiro. Barba
branca amarelada e longa, cabelo
idem, amarrado num rabo de cavalo, Raimundo tem certo senso
estético. Amarra sacos de fios entrecruzados de diferentes procedências, um fazendo as vezes de
calça, outro de camisa, outro ainda de saiote. Cobrindo tudo, uma
capa de saco plástico preto -resistente à chuva- e um chapéu.
À sua volta, todo um sistema,
organizado sobre a grama da ilha
da Pedroso de Morais. Atrás dele,
o lixo. À sua esquerda, o lugar de
dormir, que guarda também garrafas d'água e comida doada, para
que o sol não as esquente ou estrague. À direita, o retângulo de madeira que usa para se locomover
quando a perna falha -por falta
de atividade, estaria atrofiando.
E ele escreve.
Geralmente listas de doações,
que distingue do resto ao colocar
a sigla RDNM no canto superior
direito das páginas. "Dia 7 de janeiro de 2005: dois quilos de açúcar, duas garrafas de água, 0,54 ml
de café preto, 1,76 kg de feijão cozido, um papel higiênico", lê, em
voz alta. RDNM é "Relação Diária
de Números e Mantimentos".
"Escrevo 2005, mas estamos na
segunda metade do terceiro milênio. Sabe o que é isso? As pessoas
dizem 2005, mas é 2500. DOIS
MIL E QUINHENTOS!", grita.
Gritos e repetições em voz alta serão constantes quando quiser ressaltar pontos ou não responder.
Menciono a semelhança de sua
pose com a criação do francês Auguste Rodin (1840-1917). Indago
se sabe quem foi o escultor. "Todo
jornalista que vem aqui me coloca
num pedestal e se finge de simples", reclama. "Assim, não podemos falar de igual para igual." Como todo mundo, aliás, ele também tem críticas à imprensa. "TV,
rádio e meio impresso, nunca
veio um jornalista de verdade me
entrevistar. Não será hoje."
Insisto no escultor. Ele diz que
prefere falar da pintora modernista Tarsila do Amaral (1886-1973).
"Ela dizia que artista não tinha
idade. Não sou artista. Tenho 67
anos." Fala de Mario de Andrade
(1893-1945), pois "eles" o proibiram de falar de Machado de Assis
(1839-1908), seu escritor preferido. Eles? "ELES, eu sou vítima do
sistema psiquiátrico judicial. O
que estamos falando aqui está
sendo monitorado e gravado."
Não há ninguém gravando nada, digo. "ELES ESTÃO GRAVANDO TUDO!" E segue o passeio literário. "Sabia que o marco
do modernismo "Macunaíma" teve o nome mudado? Mario de Andrade escreveu originalmente
"MacuMaíma", mas foi obrigado a
mudar por pressão d'ELES. Os
falsificadores obrigaram."
O modernismo leva a conversa
de volta aos escultores. "Gosto de
Victor Brecheret, do "Monumento às Bandeiras", logo ali à frente.
Gosto também das obras dele na
Galeria Prestes Maia. Ia até lá
quando conseguia andar." Um
carro buzina e uma mulher grita o
nome dele com uma sacola de um
restaurante nas mãos.
Ele se levanta -e anda até lá.
Pega a sacola, agradece e volta a se
sentar. "Ela é uma das doadoras."
Mas ele consegue andar? "Desde
1976 SOU VÍTIMA DO SISTEMA
PSIQUIÁTRICO JUDICIAL", grita. "Desde 1976 não tenho amor,
só pelo trabalho, nem família, só a
rua. Sexo também não. Toda manhã eu puxo a pele de minha glande para baixo, para lembrar porque não faço mais sexo."
Então, chegam duas mulheres,
mãe e filha, a mais velha querendo
mostrar a "curiosidade" do bairro
à mais nova. A atitude é de visitantes de zoológico. "Não te falei
que ele existia?", pergunta a mãe a
uma filha envergonhada. "Você é
famoso por aqui, viu?", diz a ele.
"Tudo bem?". "Tudo", responde
Raimundo, resignado. "Nós podemos ouvir a conversa do senhor?", pergunta ao repórter. Raimundo não gosta de ser "você" e
de o repórter, mais novo, ser "senhor", e resolve o conflito social
com uma palavra: "Não". As duas
se afastam, decepcionadas.
Para mudar de assunto, pergunto se tem livros. "Não, roubam tudo. Mas ganho muita Bíblia. Não
leio. Quer dizer, no livro de "Gênesis" consegui desvendar o segredo
da potência norte-americana."
E explica: "No quarto dia, Deus
criou sol e lua. Já tive duas notas
de dólar aqui. Roubaram. Mas
examinei direitinho. Conte quantas letras e espaços encimam a nota do dólar: "United States of
America". 24. Dois -o sol e a
lua- mais quatro -as duas criações do quarto dia. Ou seja, não é
à toa que os Estados Unidos celebram a independência no dia 4."
Ele parece ignorar tudo o que
ocorreu desde o fatídico 1976.
Não sabe quem é o prefeito, o governador. Lula? "Esse nome não
quer dizer nada, ELES colocaram
ele lá." Internet? "Com a Lei de
Imprensa de 1967, os militares
obrigaram as empresas a fazer sua
comunicação interna." Não, internet não é isso, retruco. Aos berros: "EXISTEM TRÊS MEIOS DE
COMUNICAÇÃO, POR PAPEL,
POR ONDAS E POR IMAGEM!
INTERNET USA O QUÊ?" Ondas, imagem, cabos. "Pois então."
Raimundo Arruda Sobrinho
parece ter vindo a São Paulo depois de escapar da escola em
Goiás. Teria sido vendedor de livros e bibliotecário. Teria tido um
surto psiquiátrico em 1976, internado e solto. Foi ficando nas ruas.
É a história que conta, confirmada em linhas gerais pela única parente adotiva viva, Joana de Assis
Porto, mas sem documentação.
"Roubaram meus documentos", diz. "Mas não devo nada a
ninguém. Posso entrar na sede do
Dops de cabeça erguida, o coronel
Erasmo Dias não poderá fazer nada comigo", diz, citando o extinto
Departamento de Ordem Política
e Social, a polícia política da ditadura, e ao ex-vereador e coronel
reformado do Exército, que foi secretário da Segurança Pública de
São Paulo entre 1974 e 1979.
"O Condicionado" está nas ruas
porque é um perseguido político,
diz. Tentou ir para o Paraguai, foi
"expulso". Pediu asilo à ONU, em
Nova York, mas teve o pedido negado. Então, tentou a França. Por
quê? "Liberté, egalité, fraternité",
responde. Novo pedido negado.
Foi aos consulados da Suíça e da
Inglaterra. Por que esses dois países? "Se um bar está fechado, você
vai batendo nas portas dos outros,
até que algum o aceite." O bar que
o aceitou sem perguntas foi as
ruas.
(SÉRGIO DÁVILA)
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