São Paulo, domingo, 25 de dezembro de 2005

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ILHA DA FANTASIA

Sem-teto usa apenas um tipo de caneta e de papel e lembra a obra "O Pensador", de Rodin, ao escrever

Metódico, Raimundo encaderna seus textos

DA REPORTAGEM LOCAL

O sem-teto Raimundo Arruda Sobrinho, 67, que escreve textos literários e assina "O Condicionado", tem um método rigoroso. Só calca suas canetas, que devem ser da marca Bic, tinta preta ou azul, em folhas de papel sulfite brancas e pautadas, tamanho padrão, que compra soltas, na papelaria. "A caneta custa R$ 0,58, mas a tinta dura pouco, ou escreveria mais."
Escreveria o quê? Textos como "(O Maior Casamento na Ciência) é o do Pensamento com a Eletrônica. Ambos, abstratos. Só a Eletrônica pôde fazer a grandeza da Psiquiatria, que é pensamento. E este, é o responsável por toda a Civilização." Raimundo controla todas as etapas da produção: cria, escreve, costura os pedaços de papel, geralmente quartos da sulfite que formam livretes, e os dá (leia trechos nesta página).
Mas também relatórios. Quem passa pela avenida, com visão melhor se na direção Lapa-Pinheiros, o verá no canto inferior direito, sentado sobre um caixote de madeira, as pernas cruzadas, a mão esquerda à cabeça, a mão direita segurando a Bic, o maço de papéis em seu colo esperando as idéias. Pela pose, é impossível não pensar no "Pensador" de Rodin.
Pelo aspecto visual, porém, outra figura histórica vem à cabeça: Antônio Conselheiro. Barba branca amarelada e longa, cabelo idem, amarrado num rabo de cavalo, Raimundo tem certo senso estético. Amarra sacos de fios entrecruzados de diferentes procedências, um fazendo as vezes de calça, outro de camisa, outro ainda de saiote. Cobrindo tudo, uma capa de saco plástico preto -resistente à chuva- e um chapéu.
À sua volta, todo um sistema, organizado sobre a grama da ilha da Pedroso de Morais. Atrás dele, o lixo. À sua esquerda, o lugar de dormir, que guarda também garrafas d'água e comida doada, para que o sol não as esquente ou estrague. À direita, o retângulo de madeira que usa para se locomover quando a perna falha -por falta de atividade, estaria atrofiando.
E ele escreve.
Geralmente listas de doações, que distingue do resto ao colocar a sigla RDNM no canto superior direito das páginas. "Dia 7 de janeiro de 2005: dois quilos de açúcar, duas garrafas de água, 0,54 ml de café preto, 1,76 kg de feijão cozido, um papel higiênico", lê, em voz alta. RDNM é "Relação Diária de Números e Mantimentos". "Escrevo 2005, mas estamos na segunda metade do terceiro milênio. Sabe o que é isso? As pessoas dizem 2005, mas é 2500. DOIS MIL E QUINHENTOS!", grita. Gritos e repetições em voz alta serão constantes quando quiser ressaltar pontos ou não responder.
Menciono a semelhança de sua pose com a criação do francês Auguste Rodin (1840-1917). Indago se sabe quem foi o escultor. "Todo jornalista que vem aqui me coloca num pedestal e se finge de simples", reclama. "Assim, não podemos falar de igual para igual." Como todo mundo, aliás, ele também tem críticas à imprensa. "TV, rádio e meio impresso, nunca veio um jornalista de verdade me entrevistar. Não será hoje."
Insisto no escultor. Ele diz que prefere falar da pintora modernista Tarsila do Amaral (1886-1973). "Ela dizia que artista não tinha idade. Não sou artista. Tenho 67 anos." Fala de Mario de Andrade (1893-1945), pois "eles" o proibiram de falar de Machado de Assis (1839-1908), seu escritor preferido. Eles? "ELES, eu sou vítima do sistema psiquiátrico judicial. O que estamos falando aqui está sendo monitorado e gravado."
Não há ninguém gravando nada, digo. "ELES ESTÃO GRAVANDO TUDO!" E segue o passeio literário. "Sabia que o marco do modernismo "Macunaíma" teve o nome mudado? Mario de Andrade escreveu originalmente "MacuMaíma", mas foi obrigado a mudar por pressão d'ELES. Os falsificadores obrigaram."
O modernismo leva a conversa de volta aos escultores. "Gosto de Victor Brecheret, do "Monumento às Bandeiras", logo ali à frente. Gosto também das obras dele na Galeria Prestes Maia. Ia até lá quando conseguia andar." Um carro buzina e uma mulher grita o nome dele com uma sacola de um restaurante nas mãos.
Ele se levanta -e anda até lá. Pega a sacola, agradece e volta a se sentar. "Ela é uma das doadoras." Mas ele consegue andar? "Desde 1976 SOU VÍTIMA DO SISTEMA PSIQUIÁTRICO JUDICIAL", grita. "Desde 1976 não tenho amor, só pelo trabalho, nem família, só a rua. Sexo também não. Toda manhã eu puxo a pele de minha glande para baixo, para lembrar porque não faço mais sexo."
Então, chegam duas mulheres, mãe e filha, a mais velha querendo mostrar a "curiosidade" do bairro à mais nova. A atitude é de visitantes de zoológico. "Não te falei que ele existia?", pergunta a mãe a uma filha envergonhada. "Você é famoso por aqui, viu?", diz a ele. "Tudo bem?". "Tudo", responde Raimundo, resignado. "Nós podemos ouvir a conversa do senhor?", pergunta ao repórter. Raimundo não gosta de ser "você" e de o repórter, mais novo, ser "senhor", e resolve o conflito social com uma palavra: "Não". As duas se afastam, decepcionadas.
Para mudar de assunto, pergunto se tem livros. "Não, roubam tudo. Mas ganho muita Bíblia. Não leio. Quer dizer, no livro de "Gênesis" consegui desvendar o segredo da potência norte-americana."
E explica: "No quarto dia, Deus criou sol e lua. Já tive duas notas de dólar aqui. Roubaram. Mas examinei direitinho. Conte quantas letras e espaços encimam a nota do dólar: "United States of America". 24. Dois -o sol e a lua- mais quatro -as duas criações do quarto dia. Ou seja, não é à toa que os Estados Unidos celebram a independência no dia 4."
Ele parece ignorar tudo o que ocorreu desde o fatídico 1976. Não sabe quem é o prefeito, o governador. Lula? "Esse nome não quer dizer nada, ELES colocaram ele lá." Internet? "Com a Lei de Imprensa de 1967, os militares obrigaram as empresas a fazer sua comunicação interna." Não, internet não é isso, retruco. Aos berros: "EXISTEM TRÊS MEIOS DE COMUNICAÇÃO, POR PAPEL, POR ONDAS E POR IMAGEM! INTERNET USA O QUÊ?" Ondas, imagem, cabos. "Pois então."
Raimundo Arruda Sobrinho parece ter vindo a São Paulo depois de escapar da escola em Goiás. Teria sido vendedor de livros e bibliotecário. Teria tido um surto psiquiátrico em 1976, internado e solto. Foi ficando nas ruas. É a história que conta, confirmada em linhas gerais pela única parente adotiva viva, Joana de Assis Porto, mas sem documentação.
"Roubaram meus documentos", diz. "Mas não devo nada a ninguém. Posso entrar na sede do Dops de cabeça erguida, o coronel Erasmo Dias não poderá fazer nada comigo", diz, citando o extinto Departamento de Ordem Política e Social, a polícia política da ditadura, e ao ex-vereador e coronel reformado do Exército, que foi secretário da Segurança Pública de São Paulo entre 1974 e 1979.
"O Condicionado" está nas ruas porque é um perseguido político, diz. Tentou ir para o Paraguai, foi "expulso". Pediu asilo à ONU, em Nova York, mas teve o pedido negado. Então, tentou a França. Por quê? "Liberté, egalité, fraternité", responde. Novo pedido negado. Foi aos consulados da Suíça e da Inglaterra. Por que esses dois países? "Se um bar está fechado, você vai batendo nas portas dos outros, até que algum o aceite." O bar que o aceitou sem perguntas foi as ruas. (SÉRGIO DÁVILA)


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