São Paulo, segunda-feira, 26 de janeiro de 2004

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ÁLBUM DE ANIVERSÁRIO

Misteriosa São Paulo

DANUZA LEÃO
COLUNISTA DA FOLHA

A partir de hoje, ser quatrocentão é a mesma coisa que ser emergente: quem não tem um sobrenome de pelo menos 450 anos é praticamente um novo rico -isso se for rico.
A festa começou cedo: às 10h da manhã, a 23 de Maio já estava cheia de paulistanos andando de um lado para o outro, prontinhos para se divertirem, e a partir das 11h já tinha tanta gente, mas tanta, que a rua passou a ter, disciplinadamente, mão e contramão. Se alguém parava porque o tênis estava desamarrado ou a carteira tinha caído, a multidão atrás gritava em coro: "Parou por quê? Por que parou?". Não adianta: nem em dia de festa São Paulo tem o direito de parar.
No capítulo "comes", havia montes de barraquinhas, cada uma com dois tipos de comida: japonesa e mineira, por exemplo, ou italiana e pastel, ou natural e petiscos, ou chinesa e espanhola, ou portuguesa e cachorro-quente, ou sanduíche italiano e paulistana moderna; e acarajé, claro. O critério para essas uniões? E existe critério para isso?
Do outro lado da rua, conjuntos musicais tocavam para esquentar os ânimos, em cima dos trios elétricos estacionados a não mais de dois metros um do outro. No primeiro era forró, no seguinte alguém cantava "Sampa", o terceiro atacava de bolero, depois vinha o de música baiana, aí o de rock pesado, o de chorinho, o de baião -e ninguém pode se queixar de falta de animação. Para quem gosta de música, um prato cheio, até porque se ouvia pelo menos três ao mesmo tempo. O que mais tinha, além dos casais de mãos dadas e das crianças em carrinhos, eram cachorros, de todos os tamanhos, raças, cores e credos, correndo e latindo.
Aí fiquei pensando em São Paulo: mas que cidade é esta?
São Paulo é feia; feia, freqüentemente cinza, suja, e no mesmo dia pode fazer sol, chover, e os termômetros irem dos 15C aos 35C, sem pedir licença. São Paulo nem parece ser uma cidade tropical: não tem praia, não tem morros, não tem baía, não tem paisagem de cartão postal. As amizades não começam numa fila de banco, o trânsito é dos piores do mundo a qualquer hora do dia e da noite, a grande invenção de lazer em shoppings foi inventada em SP -que jeito?-, e é nessa cidade que os ricos são mais bregas do que em qualquer outra do mundo (e quanto mais ricos pior).
É para falar ainda mais mal de São Paulo? Não, chega.
Eu só queria que alguém me explicasse esta cidade. Se alguém vem a São Paulo trabalhar, fica louco para ir embora, se possível no mesmo dia. Já os que, por algum motivo, vieram morar em São Paulo, não querem nunca mais sair daqui. Não adianta falar em mar azul, coqueiro, alegria e simpatia do povo; a cidade tem um charme secreto, que não se percebe logo, mas que depois que se entende, não se pode viver sem.
Algumas cidades são fáceis como uma gostosinha de tamancão, minissaia e perninha bem queimada, e com a mesma facilidade com que seduzem, são esquecidas.
Outras, que nem são bonitas à primeira vista, quando você percebe, está totalmente envolvido e dela não vai mais conseguir se livrar -nem quer.
É uma coisa séria, profunda, misteriosa, eterna, e é assim que bate o coração das pessoas por São Paulo.



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