São Paulo, terça-feira, 26 de janeiro de 2010

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CECILIA GIANNETTI

Agenda secreta de uma aquariana pequena


A menina senta com a agenda aberta e descreve o que viu; tem a letra redonda e as unhas roídas de preocupações infantis


É TOMADA por vontade intensa de soltar uma gargalhada, que chegaria de não se sabe onde, de algum lugar que não se pode ver a não ser que se esteja bem entrado num transe de saia rodada, desses das religiões de herança africana que sobrevivem misturadas a tantas outras crenças no Rio de Janeiro. Essa gargalhada ela guarda como um soluço dentro do peito enquanto escreve, a menina de 14 anos.
Sim, ainda somos meninos aos 14 anos, não importa o que digam a TV, o cinema, as revistas, suas roupas e amigos íntimos, seu comportamento e a cidade que apressa a juventude ao patamar adulto, que ainda não alcançamos nem na ponta dos pés.
A festa da carne está pronta. Prenderão em casa suas crianças? Duvidamos. Prenderão os potenciais malfeitores? Alguém ainda emprega tal termo, "malfeitores"? O mundo novo é leniente, o mundo velhíssimo também o foi. Sempre fomos assim, então.
Por trás das árvores no subúrbio, as luzes acesas de repente escurecem a vida. E, à menina que planeja na cabeça uma fantasia de Carnaval provocante, resta jogar conversa janela afora, sozinha, murmurando rente à dobra da cortina, espiando lá de cima do seu brocado a comédia da carne dos namorados que passeiam muito mal com o pobre do labrador amarrado na coleira.
Eles se beijam, e o cão aguarda pacientemente sua vez de urinar num toco de cimento ou árvore. A menina imagina, melhor que o beijo, o carinho que existe no ato simples de chorar encostada ao pelo do cachorro do vizinho. Que sebento e cheiroso esse cachorro (esse cheiro você jamais esquecerá), lambe o próprio couro onde não há pelos. O rapaz lhe parece ansioso ao engolir a boca da moça, mais ansioso que o labrador. O labrador foi educado e responde com sua resignação escrava.
A menina se cansa do romance e da impossibilidade de se aproximar do cão, escravo de um amor que não lhe deixa restos de afagos. Senta à cama com a agenda aberta. Há datas marcadas, provas terríveis pelas quais terá de passar por estudiosa ou inteligente, nunca um prodígio. Toma da caneta bic azul e descreve o que viu pela janela. Há carinho na composição escrita pela menina.
Tem a letra redonda e os joelhos ralados, as unhas roídas de preocupações infantis. A letra redonda explica: "Rumino uma coisa quieta, uma constatação sem surpresa. Das que nascem à toa, e à toa vão comendo pelas beiradas a cortininha puída que esconde um segredo, até que não exista mais cortina. E o segredo, sem cortina, é só um fato. Eu percebo que já o adivinhava atrás do pano, e sua nudez não me choca".
Encontro a agenda de minha filha aberta. É um convite traiçoeiro, cada página de caligrafia bem treinada, como a paciência do cão. Posso seguir pensando em minha filha como a criança cuja atenção principal será sempre dirigida a mim e a mais ninguém. Posso tê-la, possuí-la como ninguém jamais o fará.
Destruí-la entre meus braços, tornar a produzir leite com meus seios, ou um refrigerante viciante que verta dos meus seios, isso sim, talvez misturado à vodca... E tê-la para sempre acorrentada a mim.
Quero da minha filha tudo, toda ela, e esse amor não pode ser o que todas as mães sentem. As que abandonam bebês em bueiros, lixeiras ou rios. Eu quero toda a minha filha somente para mim.
Ou posso ignorar que ela pensa tais coisas e as põe no papel e que talvez um dia isso seja o que venha a fazer de sua vida. Observar e anotar. Espiã.

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