São Paulo, domingo, 26 de março de 2006

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SOBRE TRILHOS

Com 125 mil passageiros ao dia, linha F é, segundo a própria companhia, a pior da região metropolitana de SP

Trens da CPTM têm oração, camelô e samba

Caio Guatelli/Folha Imagem
Passageiros em viagem da linha F da CPTM, na qual os trens trafegam superlotados e, quase sempre, com suas portas abertas


RICARDO GALLO
DA REPORTAGEM LOCAL

CAIO GUATELLI
REPÓRTER-FOTOGRÁFICO

O relógio marca 6h25 na estação Calmon Viana, em Poá (Grande São Paulo). À beira da plataforma, numa manhã de quarta-feira, centenas de pessoas embarcam na linha F e iniciam viagem no trem superlotado, de portas abertas. O vandalismo é constante. Os vagões, quase "temáticos", reúnem usuários de drogas, grupos de evangélicos e até pagodeiros.
Com cerca de 125 mil passageiros diariamente, a linha F é, segundo a própria CPTM (Companhia Paulista de Trens Metropolitanos), a pior da Grande São Paulo. Nos trens, o primeiro vagão costuma ser dos "nóias", o quarto é o da "benção" e, em algumas sextas-feiras, o último é o do pagode -o único que a Folha não conseguiu flagrar. Ambulantes são vistos em todos os vagões.

Cenourão
Na linha F, o trem não é chamado de trem -por causa do péssimo estado de conservação, as composições fabricadas no final dos anos 70 ganharam apelidos curiosos dos passageiros, como cenourão, latão ou sucatão.
"É horrível. Esqueceram da gente, por isso deixam esse trem velho aqui", diz, quase sem se mexer, a operadora de cobrança Regina Célia Ezequiel, 25, que, na quarta-feira de sol, tentava ficar em pé num dos vagões lotados. As quebras de trens são constantes, o que a faz contar com o atraso.
Dois vagões adiante está Nei. Olhos fechados, feição compenetrada, o vendedor de 33 anos que não quis revelar o sobrenome repete em voz alta as orações do pastor. "Glória, senhor, glória".
Em pé, mãos para cima, Nei acena com a cabeça quando ouve o pastor dizer que correto não "é aquele que se diz bonzinho, que se faz de bonzinho, mas sim aquele que segue os ensinamentos de Jesus". "Isso aqui faz bem para muita gente", afirma o vendedor, evangélico há dois anos.
"Estação Brás, desembarque pelo lado direito do trem", anuncia a voz eletrônica do alto-falante.
No trem seguinte, está o gerente de condomínio Valdomiro Antunes, 32, pastor há oito anos. Na viagem de cerca de uma hora, ajuda a evangelizar os passageiros. "Já salvei gente que queria se suicidar e, depois de ouvir a palavra, desistiu." Ele aprendeu a celebrar o culto no trem com os colegas que "já se aposentaram". O culto no quarto vagão ocorre normalmente entre 5h30 e 8h30, pela manhã, e entre 16h e 21h. "As pessoas são necessitadas, precisam ouvir a palavra do senhor Jesus."
À tarde, na viagem de volta do Brás a Calmon Viana, no primeiro vagão, um homem se aproxima com um pacote nas mãos, discretamente. Entrega a um colega. É maconha. Os passageiros evitam olhar. Ele desce na estação Aracaré, em Itaquaquecetuba. "O primeiro vagão é da molecada e de nóias, todos sabem, por isso não gosto de andar lá", diz o cortador Josival Felipe, 41.
Segundo a CPTM, a existência de um vagão específico do tráfico é "mito", mas há, sim, uso de drogas dentro dos trens. "Temos ciência do tráfico [na rede], prova disso é que fazemos um número acentuado de operações. Só no final do ano passado prendemos 56 pessoas de uma vez", afirma o coronel da reserva Leopoldo Augusto Corrêa Filho, gerente de segurança da CPTM. Segundo ele, no entanto, barrar um trem e revistar todos os passageiros provoca uma paralisação de duas horas.

Mercado aberto
Mesmo nos vagões com grupos específicos, os hábitos são os mesmos: portas abertas, passageiros pendurados com o corpo para fora e ambulantes circulando vendendo de chocolates a cerveja, de cortadores de unha a pomadas para micose. "Brahma, Coca, Kaiser, "suquiágua'", diz rápido um deles, enquanto oferece, em um isopor, os produtos aos passageiros. Uma mulher vende um produto com uma característica curiosa. "Amendoim, crocrante, delicioso, crocrante", brada ela.
A venda ocorre no trajeto entre uma estação e outra. Assim que o trem pára, os ambulantes guardam tudo em bolsas ou mochilas e descem. No outro trem, embarcam de novo. "É assim. Ninguém quer perder mercadoria", afirma um dos vendedores.


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