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MOACYR SCLIAR
No calmo mundo dos bonecos
Boneco de palha vigia prisão para a
PM. Um boneco de palha vestido
com uma farda da Polícia Militar foi
encontrado anteontem em uma das
guaritas do CDP (Centro de Detenção Provisória) de Taubaté, onde um
policial deveria estar fazendo a segurança.
Cotidiano, 23.ago.2002
O primeiro boneco apareceu numa das guaritas.
Fora colocado ali em caráter experimental, e assim ficou durante
vários dias, sempre cuidadosamente observado. As conclusões
desse trabalho preliminar foram
satisfatórias, entusiasmantes
mesmo. Para começar, o boneco
passava o dia inteiro imóvel, sentado na mesma posição. Não se
levantava, não abandonava o
posto (nem mesmo para ir ao banheiro). Se, por acaso, surgia a
necessidade de removê-lo da posição, ele revelava-se leve, facilmente transportável. O boneco
não comia. E também não falava:
ou seja, não reclamava, não reivindicava. Não era pago, mas isso
não o abalava em nada.
A experiência prosseguiu com
outros bonecos. De novo, os resultados foram animadores. Claro,
de vez em quando, alguns imprevistos, por assim dizer, ocorriam.
Por exemplo: camundongos fizeram um ninho na perna de um
dos bonecos (que, mesmo assim,
continuou firme em seu posto). A
rigor, isso não seria um problema
maior, mas a verdade é que roedores não podem ser tolerados,
nem mesmo numa prisão. Uma
empresa de desratização foi chamada e, depois de algumas horas
de tenaz combate (os camundongos relutavam em abandonar a
confortável morada), foram postos a correr.
Num incidente um pouco mais
lamentável, alguém (por descuido ou por má-fé) deixou cair um
fósforo aceso em um outro boneco. Em se tratando de palha, as
chamas rapidamente se propagaram e, em poucos segundos, o antes fiel guardião estava reduzido
a um pequeno monte de cinzas.
Mas a palha não chega a ser material escasso, de modo que, providenciada nova vestimenta, logo
havia um novo boneco ocupando
o posto do desaparecido.
Em pouco tempo, a prisão estava entregue inteiramente aos bonecos de palha. E aí aconteceu o
inevitável: os presos acabaram
por perceber o que estava acontecendo. De início perplexos, discutiram o assunto e chegaram a
uma posição comum: a substituição dos reclusos por bonecos de
palha. Isso foi sendo feito gradualmente, mas com grande sucesso. Hoje a prisão está entregue
aos bonecos de palha, guardiães e
prisioneiros. O resultado é calma
total. Não há brigas, não há rebeliões. Aquelas cenas dramáticas
que a TV mostra ali não ocorrem.
Ah, sim, e também não há fugas.
A prisão está sendo muito visitada. Muitos vão lá para admirar
os bonecos, cujas faces foram confeccionadas com muito apuro
e arte. Em todos os rostos, um
sorriso. Fixo, permanente. O sorriso daqueles que habitam, para
sempre, o melhor dos mundos
possíveis.
O escritor Moacyr Scliar escreve às segundas-feiras, nesta coluna, um texto de
ficção baseado em reportagens publicadas no jornal.
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