São Paulo, segunda-feira, 26 de agosto de 2002

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MOACYR SCLIAR

No calmo mundo dos bonecos

  Boneco de palha vigia prisão para a PM. Um boneco de palha vestido com uma farda da Polícia Militar foi encontrado anteontem em uma das guaritas do CDP (Centro de Detenção Provisória) de Taubaté, onde um policial deveria estar fazendo a segurança. Cotidiano, 23.ago.2002

O primeiro boneco apareceu numa das guaritas. Fora colocado ali em caráter experimental, e assim ficou durante vários dias, sempre cuidadosamente observado. As conclusões desse trabalho preliminar foram satisfatórias, entusiasmantes mesmo. Para começar, o boneco passava o dia inteiro imóvel, sentado na mesma posição. Não se levantava, não abandonava o posto (nem mesmo para ir ao banheiro). Se, por acaso, surgia a necessidade de removê-lo da posição, ele revelava-se leve, facilmente transportável. O boneco não comia. E também não falava: ou seja, não reclamava, não reivindicava. Não era pago, mas isso não o abalava em nada.
A experiência prosseguiu com outros bonecos. De novo, os resultados foram animadores. Claro, de vez em quando, alguns imprevistos, por assim dizer, ocorriam. Por exemplo: camundongos fizeram um ninho na perna de um dos bonecos (que, mesmo assim, continuou firme em seu posto). A rigor, isso não seria um problema maior, mas a verdade é que roedores não podem ser tolerados, nem mesmo numa prisão. Uma empresa de desratização foi chamada e, depois de algumas horas de tenaz combate (os camundongos relutavam em abandonar a confortável morada), foram postos a correr.
Num incidente um pouco mais lamentável, alguém (por descuido ou por má-fé) deixou cair um fósforo aceso em um outro boneco. Em se tratando de palha, as chamas rapidamente se propagaram e, em poucos segundos, o antes fiel guardião estava reduzido a um pequeno monte de cinzas. Mas a palha não chega a ser material escasso, de modo que, providenciada nova vestimenta, logo havia um novo boneco ocupando o posto do desaparecido.
Em pouco tempo, a prisão estava entregue inteiramente aos bonecos de palha. E aí aconteceu o inevitável: os presos acabaram por perceber o que estava acontecendo. De início perplexos, discutiram o assunto e chegaram a uma posição comum: a substituição dos reclusos por bonecos de palha. Isso foi sendo feito gradualmente, mas com grande sucesso. Hoje a prisão está entregue aos bonecos de palha, guardiães e prisioneiros. O resultado é calma total. Não há brigas, não há rebeliões. Aquelas cenas dramáticas que a TV mostra ali não ocorrem. Ah, sim, e também não há fugas.
A prisão está sendo muito visitada. Muitos vão lá para admirar os bonecos, cujas faces foram confeccionadas com muito apuro e arte. Em todos os rostos, um sorriso. Fixo, permanente. O sorriso daqueles que habitam, para sempre, o melhor dos mundos possíveis.


O escritor Moacyr Scliar escreve às segundas-feiras, nesta coluna, um texto de ficção baseado em reportagens publicadas no jornal.


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