São Paulo, quinta-feira, 26 de agosto de 2004

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Filme mostra a cidade exposta pela marginal Tietê

DA REPORTAGEM LOCAL

"Foi aberta uma nova avenida em São Paulo. Ela nos obriga a olhar a cidade por dentro." É assim que a marginal Tietê é apresentada no curta-metragem "Lacrimosa", feito em 1969 pelo diretor Aloysio Raulino e apresentado pela primeira vez no 16º Festival Internacional de Curta-Metragens de São Paulo.
O curta experimental, filmado em preto e branco, mostra em dez minutos como era uma das principais artérias viárias de São Paulo há 35 anos: vastas áreas descampadas à beira da pista, lixões, poucos carros (a câmera cruza com cinco veículos ao longo do filme) e muitos pedestres.
Como a marginal se tornou uma alternativa às vias tortuosas do centro da cidade para viagens de um bairro a outro, os motoristas de São Paulo deixaram um trajeto conhecido e urbanizado por outro que deixava à mostra, logo ao lado, uma série de favelas que cresciam no local.

Exclusão
O título, "Lacrimosa" (que provoca lágrimas, torturante), não se deve à relação de ódio que os motoristas de hoje têm com as marginais por conta dos congestionamentos constantes, mas ao retrato da miséria -até então invisível para muitos paulistanos- das comunidades instaladas nas laterais da via expressa.
A história das marginais de São Paulo remonta aos anos 20, quando o sanitarista Francisco Saturnino de Brito apresentou ao prefeito Pires do Rio um projeto de retificação do rio Tietê. O projeto era o primeiro passo para a construção de vias laterais ao rio, à época tortuoso demais para isso, mas previa uma espécie de piscinão nas margens para evitar enchentes.
"Saturnino de Brito era notabilizado por trabalhar sistemas de drenagem, mas o que predomina na engenharia brasileira é a canalização de córregos para a implantação de avenidas", explica a urbanista Raquel Rolnik, secretária nacional de Programas Urbanos do Ministério das Cidades.
Segundo ela, foi a especulação imobiliário que inviabilizou o projeto de drenagem. "Quando um rio é canalizado e suas margens são ocupadas, isso atrai um processo de loteamento, transformando terras em mercadoria."
O rio Tietê serpenteava os bairros vizinhos e começou a ser retificado em 1938.
As marginais, no entanto, mesmo que precárias, surgiram apenas nos anos 50, entre as pontes das Bandeiras e da Vila Maria para se alcançar a via Dutra --o que fez com que clubes tradicionais da cidade como o Tietê e o Esperia tivessem parte de suas áreas desapropriadas.

Perigos
Foi o prefeito Prestes Maia quem, em 56, injetou forças na ampliação da via expressa, implantando uma pista de sete metros de largura, pavimentada com concreto do lado direito do rio. Quando voltou a ser prefeito, entre 1961 e 1965, Prestes Maia retomou o projeto, sem verba suficiente para tal, o que fez com que parte da avenida fosse calçada com paralelepípedos.
"Lacrimosa" encontra a marginal já em 1969, com seus problemas expostos, seja na pista, seja a sua margem.
Em 1970, São Paulo tinha apenas 1 milhão de veículos, entre carros, táxis, ônibus e caminhões. E os perigos da marginal já eram tema de reportagens de diários naquele ano. Uma delas destacava que "a avenida mais importante, mais segura e mais perfeita de São Paulo é, na verdade, um caminho perigoso".
"Os guardas de trânsito, únicas pessoas que parecem saber que a marginal tem novos sentidos de direção, não estão conseguindo multar todos os motoristas infratores, tantas são as infrações que acontecem ali o tempo todo. Os motoristas, para não terem de enfrentar o tráfego perigoso, as pistas ainda em obras e pontes com trechos congestionados, preferem trafegar na contra-mão e fazer manobras proibidas", dizia reportagem publicada em dezembro de 1970, quando a velocidade a ser desenvolvida na via era de 40 quilômetros por hora.
Nessa época, os ônibus ainda pegavam passageiros na pista esquerda da via expressa, confundindo ainda mais o trânsito local.
Em 79, segundo reportagem da Folha, a marginal Tietê já era recordista em acidentes na cidade. "Hoje, é impossível pensar a cidade sem as marginais. Elas extrapolaram a dimensão municipal e cumprem um papel essencial no sistema de circulação regional", afirma Rolnik.
"Mas, com um sistema de transporte integrado, com corredor de ônibus, metrô e trens integrados e com bilhete único, o problema das marginais pode ser resolvido", diz a urbanista. "Só assim os paulistanos não serão mais condenados a pegar seus carros e ficar parados nos congestionamentos das marginais." (FM)


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