São Paulo, domingo, 26 de setembro de 2004

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DANUZA LEÃO

Por um pouco de coerência

Você se acha coerente? E como convive com o que aprendeu na infância -que é preciso ser honesto e nunca mentir- e passar a vida mentindo, pelo menos nas coisas banais?
"Está uma delícia essa sobremesa", "que linda, sua filha", "não posso ir a seu jantar porque vou a São Paulo". OK, tudo bem, somos todos muito civilizados, e atire a primeira pedra quem não disse esse tipo de mentirinha branca muitas vezes na vida.
Mas às vezes é difícil: "Você acha que estou gorda"? Não dá para dizer que sim; no máximo, que ela fica melhor mais cheiinha, que estava magra demais.
E "você acha que estou precisando de uma plástica"? Ser franca e dizer a verdade ou mentir descaradamente?
Mas tem pior: é quando a amiga está desconfiada que o marido tem um caso e pergunta (fazendo você jurar que vai dizer a verdade) se você sabe de alguma coisa. Ah, as mulheres. Não aprendem que certas perguntas não precisam ser feitas: quando se desconfia de que o marido tem um caso, é porque ele tem mesmo, mulher tem faro para essas coisas. É, às vezes, a maneira mais confortável de viver é mentindo e sendo totalmente incoerente.
Existem, por exemplo, pessoas que passam a vida fazendo discursos a favor da honestidade e da correção, e de repente estão freqüentando as piores mesas da cidade -piores no sentido moral-, como se nada fosse. São as tais das incoerências.
Um dia desses aconteceu uma festança, daquelas que, antes mesmo de acontecer, já se sabia que seria das mais ostentosas que a cidade já viu, coisa das 1.001 noites. O milionário dono da festa tem a reputação no mínimo duvidosa e nunca foi poupado nem pelas melhores nem pelas piores línguas; afinal, ele não é herdeiro, não é industrial, não é empresário, nunca teve um emprego na vida, já deu vários cheques sem fundos de milhões, já quebrou muita gente, e todo o dinheiro que tem foi ganho fazendo negócios bastante discutíveis. Negócios, não: "negócios".
Esses "negócios" são bem interessantes; quer um exemplo? Você tem um amigo no governo, que decide que em um determinado lugar da cidade vai ser aberta uma avenida. Ele te passa a informação, você compra uma grande área em torno da futura avenida, quando ela fica pronta, você vende e fica milionário.
Ninguém roubou ninguém e os dois ficaram ricos. Sim, porque quem passou a informação também leva o seu (só que informação privilegiada é crime). E detalhe: no nosso lindo mundo, negócios excusos são perfeitamente aceitos, desde que proporcionem muito dinheiro; dinheiro roubado só é crime quando é pouco.
Voltando: quem não foi convidado para a festa vira um pária, praticamente, e no dia seguinte só existe um assunto: a tal da festa.
A festa, em termos: ninguém fala se as mulheres estavam ou não lindas, se pintou um clima com alguém, se havia pessoas interessantes. Contam, embasbacados, que estava o homem do petróleo da Nigéria que veio no seu próprio Boeing, o primo do sultão de Brunei, e sobretudo do caviar; é, do caviar. Da marca e sobretudo da quantidade; essa iguaria exerce uma atração fatal sobre a classe média, e ainda tem a marca do champanhe, a marca do vinho, emendando logo com os preços: um quilo de caviar, US$ 6.000, a caixa de champagne Krug, US$ 1.800, o vinho Château Petrus 92, US$ 5.224 -a garrafa.
A festa foi para mais de mil e nunca se viu tanta fartura.
Sejamos tolerantes: todo mundo gosta de um caviarzinho, mas não é possível esquecer todos os seus discursos sobre moralidade por duas colheres de ova de peixe, mesmo que esse peixe seja esturjão.

E-mail - danuza.leao@uol.com.br


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