São Paulo, domingo, 26 de setembro de 2004

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GILBERTO DIMENSTEIN

A primavera de São Paulo tem mais cores

Uma das informações mais relevantes sobre o futuro da cidade de São Paulo é quase desconhecida. Não aparece no horário eleitoral gratuito nem nos debates dos candidatos à prefeitura -aliás, pouco aparece nos meios de comunicação. Nessa informação reside uma vocação coletiva.
Percebe-se a vocação paulistana no veloz crescimento do número de jovens que entram na faculdade, independentemente de qualquer esforço oficial. É um sinal de aprimoramento do capital humano, o mais importante dos capitais de uma comunidade.
Os números são impressionantes e estão cada vez melhores.
 
Em 1998, 277 mil pessoas estavam matriculadas no ensino superior da cidade de São Paulo. Apenas quatro anos depois, em 2002 (última estatística oficial disponível), esse número já tinha subido para 377 mil. Ou seja, mais 100 mil pessoas, em uma evolução de 36%, numa cidade em que o crescimento da população é inferior a 0,8% e que diminui ano após ano.
Apesar dessa veloz mudança, o número ainda é baixo -cerca de 13% da população entre 20 a 24 anos-, bem inferior ao de países como o Chile ou a Argentina. Tal tendência, portanto, vai continuar por uma simples questão de exigência do mercado de trabalho. Traduzindo: em menos de uma geração, haverá mais da metade de todos os jovens fazendo um curso superior. E a imensa maioria deles terá, no mínimo, ensino médio.
 
A vocação de São Paulo é ser uma cidade centrada nos serviços, voltada à produção, à absorção e à disseminação de conhecimento dos mais diferentes assuntos e especialidades. Estou-me referindo não apenas às escolas mas a qualquer núcleo gerador de idéias e inovações, a começar das empresas.
Por conta dessa vocação, só tende a aumentar a quantidade de museus, centros culturais, exposições, concertos, peças de teatro, shows, feiras comerciais, seminários e conferências, que tratam de temas que vão de moda e gastronomia a novas descobertas da medicina, a marketing e até ao terceiro setor.
Por sinal, nunca se tinha feito, no país, uma exposição sobre a história da moda como a que teve início neste mês, na Oca, no parque Ibirapuera.
 
A exposição sobre moda é um fragmento. Nunca, em toda a sua história, a cidade teve tantas mostras simultâneas, mais precisamente 50, de artes plásticas, das quais a mais importante é a Bienal, que se inicia neste fim de semana. O tema deste ano é "Território Livre", sugerindo o poder transformador da arte e a reconquista de espaços. Toda a cidade de São Paulo se presta, simbolicamente, a ser uma instalação, já que vai reconquistando, pela arte, seus espaços.
Aposta-se que, por ter entrada franca, a Bienal vá bater todos os recordes de público e atrair mais de 1 milhão de pessoas. Apenas a gratuidade não explica essa expectativa: cresce, ano a ano, o número de escolas que levam seus alunos a esse tipo de evento e de programas para formação de monitores e de professores capazes de traduzir os segredos da arte para crianças e jovens.
 
Todos esses brilhos e cores, que fazem de São Paulo a cidade mais interessante do país, ganham ainda mais destaque quando são comparados com a opacidade, para dizer o mínimo, do que é oferecido pelos governantes e mesmo prometido pelos candidatos. Nenhum dos concorrentes reflete essa vocação da cidade do conhecimento: o fundamental é seduzir os mais pobres. Por uma questão mercadológica, a tônica da campanha de José Serra é a saúde -reflete apenas a indigência de nossos serviços públicos. Está mais para candidato a ministro da Saúde que para candidato a prefeito. Bem distante da estética que toma conta da cidade, nesta primavera, Marta Suplicy entrega obras inacabadas, das quais algumas colocam pedestres em risco, mostrando o que acontece quando se mistura calendário eleitoral com dinheiro público.
Militantes petistas se comportaram, na semana passada, como quadrilhas de intimidação. Nada se compara em pobreza moral, porém, com o fato de Paulo Maluf ter usado um deficiente físico para fazer jogo sujo na campanha. O Datafolha mostra hoje que esse jogo sórdido surtiu efeito: a rejeição de Serra subiu para 15%. E a diferença com Marta Suplicy no segundo turno caiu para 10 pontos percentuais.
 
O que se faz de criativo em São Paulo, de verdade, vem pouco do oficial. Vem antes da efervescência de seus moradores, a ponto de, numa cidade cinzenta, colorirem uma primavera.
Nunca tivemos, como neste mês, uma primavera tão colorida, o que se dá graças às exposições. A diferença é que as cores são produzidas não por árvores, mas por seres humanos.
A vocação de São Paulo, em suma, é ser uma grande escola. Quem sabe, algum dia, nossos políticos aprendam essa lição.

PS - Esta coluna começou a nascer na segunda-feira à noite, quando senti o que é exatamente o "Território Livre". Assisti ao concerto de Nelson Freire com a argentina Martha Argerich. Tão sedutor quanto ouvir os dois pianistas é estar, ao mesmo tempo, na Sala São Paulo. Vivenciar espaços deteriorados que se transformam em produtores de conhecimento e beleza, ainda mais naquele grau de excelência, é sentir, quase pegar nas mãos, o que melhor podemos a partir do pior que fomos. Construído graças à parceria de poder público com o comunitário, hoje sede de uma orquestra com renome mundial, a antiga estação de trem é o melhor símbolo da vocação paulistana.

E-mail - gdimen@uol.com.br

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