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MINHA HISTÓRIA
ODESSON ALVES FERREIRA, 56
O dia que nunca passou
RESUMO
A família de
Odesson Alves Ferreira,
56, foi a mais atingida pelos efeitos do césio-137, liberado no maior acidente
radiológico do país, em
1987, em Goiânia. Foram
contaminadas 249 pessoas, quatro morreram.
O problema ocorreu
quando um aparelho de
radioterapia foi desmontado, expondo o material.
Hoje, Odesson preside a
Associação das Vítimas do
Césio-137. Na semana passada, ele divulgou carta de
apoio às "futuras vítimas"
do vazamento nuclear de
Fukushima, no Japão.
(...)Depoimento a
NATÁLIA CANCIAN
DE SÃO PAULO
Era uma quarta-feira, 22 de
setembro de 1987, quando fui
visitar meu irmão Devair. Fazia tempo que eu não o via.
Entre um café e outro, ele
disse que estava muito mal e
desconfiava de uma feijoada
que tinha comido. Tinha a
pele escura e reclamou que
os dentes estavam moles.
Foi quando ele me mostrou a peça -queria fazer
uma pedra de anel com ela.
Peguei um fragmentozinho,
do tamanho da metade de
um grão de arroz, e segurei
por menos de dois minutos.
Ele tinha comprado de
dois rapazes que foram ao
ferro-velho dele dias antes.
Minha cunhada Maria Gabriela estava encantada com
a beleza daquilo e dizia que,
à noite, emitia uma luz tão
forte que era preciso cobri-la.
Quando esfreguei na palma da mão, esfarelou. Eu disse: "Ah, mano, isso não tem
serventia". Limpei as mãos e
ficou por isso mesmo.
A família do Ivo, outro irmão que morava por ali e que
ficou com uma peça, também estava doente, mas ninguém ligou as coisas. Estavam todos fascinados.
No Ivo, a peça ficava embaixo da cama da filha, a Leide, de seis anos.
Seis dias depois, estavam
todos mal quando a Maria
Gabriela teve a ideia de levar
uma peça para a Vigilância
Sanitária. No dia seguinte
soubemos que era césio-137.
Foi uma confusão. Fomos
levados ao estádio de Goiânia e, no vestiário, passaram
uma vassoura com vinagre
na gente antes de ver o nível
de contaminação. A água ia
para o esgoto, sem cuidado.
Ali eu soube que estava
com uma dose alta de radiação. Outras pessoas, como a
Leide, que tinham feridas na
pele, foram para o hospital.
A maioria tinha encostado
na peça, como eu. Só fui internado em 1º de outubro,
quando as mãos começaram
a coçar e a inchar.
QUARENTENA
Éramos 17 pessoas em
quarentena. A Leide, a Maria
Gabriela e dois funcionários
do Devair morreram um mês
após a peça aparecer.
Não tínhamos certeza de
nada. Pela janela, víamos os
caixões de chumbo separados para nós. Dos enfermeiros, só dava para ver os
olhos. Pareciam astronautas.
Fiquei quase três meses no
hospital. Minha casa foi destruída para descontaminação, e moramos três meses
num albergue. Depois ganhamos uma casa.
Perdemos quase todas as
lembranças. Amigos e parentes que moravam fora nos
discriminaram.
Minha família foi a mais
atingida de Goiânia. Hoje,
não conseguimos ficar juntos
sem lembrar do acidente.
O Devair morreu em 94.
Ele se culpava por ter levado
a peça para casa, mas não estava escrito que era perigoso.
Passei um bom tempo com
uma ferida na mão esquerda,
que cicatrizava e reabria.
Amputei um dedo. Um dia,
um médico da Unicamp quis
fazer um experimento. Colocamos um enxerto de pele da
barriga na minha mão e a ferida parou de abrir.
PRECONCEITO
Passamos dois anos e meio
em monitoramento na Comissão Nacional de Energia
Nuclear, até que disseram
que estávamos descontaminados. Recebemos uma declaração, e a ordem era levá-la para todo lugar. Mas isso
não diminuiu o preconceito.
Eu também me autodiscrimino. Quando alguém pergunta o que é isso na minha
mão, tenho medo de falar.
Já tentei várias entrevistas
de emprego, sem sucesso, e
meu filho foi demitido.
Nos primeiros dois anos,
tinha médicos e autoridades
atentos à tudo. O governo
criou a Fundação Leide das
Neves para apoiar as vítimas.
Só que o tempo foi passando
e, como só 4 daqueles 11 caixões foram usados, acharam
que não era tão sério. O remédio parou de chegar, acabou
o atendimento psicológico.
Faço 30 exames a cada seis
meses. Sou do grupo 1 do
centro de assistência, que
monitora quem teve contato
com o césio. Somos mais de
900 vítimas, o número não
para de crescer.
Ainda sinto dores nas
mãos, principalmente quando muda a temperatura. Tem
vezes que esquenta tanto que
preciso colocá-la no freezer.
ACIDENTE NO JAPÃO
Meu primeiro sentimento
foi de compaixão. Depois,
senti apreensão, por saber
que as autoridades sempre
amenizam o problema.
Espero que lá não passem
por cima das vítimas, como
aqui. Muitas doenças só vão
aparecer daqui a anos. Nossa
maior preocupação é com os
netos. Não sabemos o que
pode acontecer com eles.
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