São Paulo, domingo, 27 de abril de 2008

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GILBERTO DIMENSTEIN

Aventuras radicais


Há todo um esforço fragmentado de intolerância à idéia de que o colapso urbano é irreversível

UM GRUPO DE 19 adolescentes da cidade de São Paulo se propôs a uma aventura que supera muito em complexidade qualquer prova escolar, mesmo eles estudando num colégio (Santa Cruz) apontado entre os melhores do país, segundo os testes nacionais.
A complexidade supera até os mais concorridos vestibulares. Desde o início deste mês, aqueles jovens começaram a ensinar voluntariamente numa escola pública, como monitores de professores.
Eles estão sendo orientados sobre o funcionamento de uma escola pública, o significado de indicadores de aprendizado, didática e, ainda, os fatores sociais que interferem no aprendizado. Com base nisso, será possível avaliar o impacto de uma intervenção.
Ao mesmo tempo em que tentam fazer a diferença, esses jovens mestres vivenciam a realidade, sistematizam o conhecimento e desenvolvem habilidade de gestão, treinando o desenvolvimento de projetos na adversidade -em poucas palavras, estão mais do que preparados para as demandas do mercado de trabalho. Saber quantos conseguirão resistir é um suspense que encheria de audiência um "reality show".
Com esse desafio, os jovens mestres sintetizam a mais interessante aventura paulistana: a reconquista de uma cidade, com a descoberta de fronteiras.

 

Em reação ao colapso urbano, com a sua sensação contínua de medo e insegurança, dissemina-se um movimento de retomada da cidade desintegrada socialmente. A deterioração do espaço público, a começar pelas escolas, era apenas o lado visível da desintegração, marcada pelos muros e pelo medo.
Há todo um esforço fragmentado, quase imperceptível, de resistência, de intolerância à idéia de que o colapso é irreversível. É, em essência, uma luta pela sobrevivência. Neste fim de semana, porém, observa-se, embora de forma passageira, a retomada de uma cidade.
Cerca de 5.000 artistas promovem, durante 24 horas, 800 eventos, especialmente na região central, misturando todos os gêneros. A arte faz com que, momentaneamente, o pedestre vença os carros; a criatividade enclausurada faz da rua seu principal palco. A poucos metros dos shows, ocorre um dos mais importantes eventos do mundo dos esportes radicais (X-Games), numa combinação de esporte e cultura.
Para completar, vieram a São Paulo pessoas de todas as partes do mundo interessadas em transformar as cidades em escolas sem salas de aula -encerra-se, neste fim de semana, o Congresso Mundial de Cidades Educadoras, cuja sede, neste ano, foi São Paulo, por causa de experiências de escolas integradas a espaços culturais em sua região histórica.
 

O movimento espacial reflete uma mudança emocional. Começa a crescer a sensação de que a guerra não está perdida. Essa percepção ocorre quando o Datafolha informa que, nesta cidade viciada em carros, a imensa maioria das pessoas pede mais e melhor transporte público, aceita mais restrições ao transporte individual e apóia em peso decisões polêmicas, como a de inibir a circulação de caminhões.
Também se nota mudança de mentalidade quando os eleitores, em sua maioria -mais uma vez segundo o Datafolha-, informam que vão tirar o voto de seu candidato à prefeitura se estiverem convencidos de que ele vai fazer da eleição um trampolim.
Apostava-se que não se imporia a lei da despoluição visual, mas a opinião pública apoiou a retirada dos outdoors; não fosse esse apoio, ninguém conseguiria brigar com os empresários.
 

Por coincidência, justamente na semana em que aqui se retomam as ruas, foi divulgado o mais sofisticado documento para fiscalizar uma cidade. Apoiado pela elite econômica, social, cultural e comunitária, o movimento "Nossa São Paulo" lançou, na quinta-feira, diversos indicadores de cada região da cidade. Os dados vão desde a gravidez precoce até a violência contra as crianças, passando pela habitação e pelo desemprego -pela primeira vez será possível medir, com alguma precisão, a evolução da qualidade de vida.
 

Apesar de todos esses esforços, ainda estamos tão longe de construir uma cidade civilizada como aqueles jovens mestres de criar uma escola pública comparável a um colégio de elite. Mas, pelo menos, já há abundantes elementos para que toda essa movimentação seja vista como uma aventura e não como uma bravata.
 

PS- Até esse momento, a sucessão municipal mostra que os políticos não estão nem remotamente próximos da grandeza dessa aventura. O assunto de que mais se ouve falar é o impacto do pleito na sucessão estadual ou presidencial -e pouco se ouve sobre os planos para a cidade.

gdimen@uol.com.br


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