São Paulo, domingo, 27 de abril de 2008

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Repórter puxa carroça pelas ruas de SP durante 4 dias

Ele percorre cerca de 50 km puxando conjunto de 90 kg e recolhendo papelão

Pesquisa da prefeitura diz que os carroceiros de SP são homens (90%), com idade entre 41 e 55 anos (48%) e nascidos na cidade (23%)

GUSTAVO FIORATTI
DA REVISTA DA FOLHA

Adquirir uma carroça em São Paulo é uma experiência. Por indicação de um carroceiro negro, alto, forte e sem os dentes da frente, vou comprar a minha em um tal de Alemão. A "loja" do Alemão fica escondida sob uma ponte, no Bom Retiro. Alemão é um homem com cerca de 1,65 m, branco, cabelos claros, barba cerrada, roupas encardidas. Uma boa carroça ali custa R$ 250, um conjunto de ferro que pesa 90 kg. Fico com ela.
Um outro carroceiro aparece tão logo empunho o carrinho. "Tá começando?", ele questiona. Digo que sim e aproveito para pedir dicas de onde poderia vender papelão e onde dormir. Ele me recomenda o albergue Dom Bosco, no Bom Retiro. "Lá tem até chuveiro com água quente", completa.
Vou para a porta do albergue Dom Bosco às 8h da terça-feira, dia 8 de abril, sem a carroça. Espero, do lado de fora, até as 13h30, para falar com a assistente social. Ela dá as caras, acompanhada de um segurança. Diz que só há vaga para carroceiros. "Minha carroça está em outro lugar", esclareço.
A assistente estranha o fato de eu ter "boa aparência", apesar da barba crescida e da camiseta encardida. Para conseguir minha vaga, respondo a várias perguntas. Como soube do albergue? Há quanto tempo estou em situação de rua? Onde meus pais moram? Não poderia ficar na casa de amigo? Bebo ou uso drogas?
Sou aceito depois de meia hora de conversa. Estou agora bem próximo de um grupo que, segundo pesquisa da prefeitura, de 2005, é formado principalmente por homens (90%), com idade entre 41 e 55 anos (48%), nascidos na própria cidade (23%).
Ainda desconfiada, a assistente inicia uma breve explicação sobre a rotina no abrigo. É um lugar onde vivem cerca de 50 pessoas. Alguns conselhos são repetidos: "Estamos oferecendo uma facilidade. Não é para se acomodar, se tornar dependente dessa oferta"; "É importante manter coisas de valor trancadas no armário. Não deixe nada espalhado nem no banheiro"; "Não chegue bêbado nem alterado por drogas. Não chegue após as 22h, a não ser que tenha autorização." Por último, diz que não dão refeições.
Paramos em frente ao espaço onde vou passar as próximas três noites: uma cama de colchão nu e um armário vazio. Momentos depois, sou liberado da conversa para, enfim, buscar minha carroça.
Às 22h, as luzes se apagam. Uma gravação de quase meia hora com repetições do "Pai Nosso", da "Ave Maria" e de outras orações sinaliza a hora de dormir. No escuro, o silêncio é quebrado pelo choro de uma criança, pelo trem que passa ao lado e por roncos.
Na manhã seguinte, somos despertados às 6h pelas mesmas orações. Há fila nos banheiros. Deixo o albergue às 7h30.
Meu roteiro matinal passa pelos bairros de Higienópolis, Cerqueira César e Pinheiros. Vou observando lixos e caçambas. Há pouco material. Vejo outros carroceiros passarem com papelões assentados sobre o fundo de suas carroças. Sou um concorrente, mas muitos me cumprimentam com um aceno de mão.
É hora de batalhar por mercadoria: arrisco pedir caixas em supermercados. Mas todos já têm acordos com outros carroceiros. Chego à avenida dr. Arnaldo todo suado, com não mais do que cinco ou seis caixas encontradas ao acaso.
Sigo, com uns 10 kg a mais nas costas. Meu destino é a rua Oscar Freire, nos Jardins. Na alameda Lorena, o segurança de uma loja de roupa assobia para me oferecer uma carga de papelão.
Depois de uma hora de caminhada, chego, enfim, à porta do sucateiro. São 13h30 e há uma fila de quatro carroças. Chega a minha vez. Vou empilhando todo aquele papelão com dificuldade. Consegui reunir quase 45 kg, mas calculo que mais de 5 kg tenham sido desperdiçados pelo chão da sucataria, na pressa imposta pelos funcionários. Saio com R$ 7,20, o resultado de quase seis horas de trabalho.
Na descida até o Bom Retiro, começa a chover forte. A chuva traz certo alívio. Ameniza o calor. A cortina d'água parece barrar a poluição dos escapamentos. O sol volta a dar as caras no fim da rua Consolação.
Chego à beira de minha cama exausto às 18h30, depois de percorrer 17,4 km. Sinto muita dor nas pernas, sobretudo no joelho.

Último dia
Nos momentos finais da reportagem, ando mais tranqüilamente pelas ruas do Bom Retiro e, no caminho, vou encontrando vários outros carroceiros. Todos erguem a mão, me cumprimentando. Retribuo, mais como um adeus do que como um aceno.
Volto às 16h para o albergue, para pegar minhas coisas. Entrego a chave do armário junto com os lençóis. Alguns dos que passam por lá nem isso fazem. Simplesmente desaparecem.
É o momento de me despedir do personagem carroceiro. Deixo a carroça numa garagem, após percorrer 16,7 km. Somadas as andanças dos três dias de trabalho, percorri exatos 49,2 km. Desta experiência fica este relato, um testemunho de quem sobreviveu 72 horas na pele de um homem-cavalo.


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