|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
Repórter puxa carroça pelas ruas de SP durante 4 dias
Ele percorre cerca de 50 km puxando conjunto de 90 kg e recolhendo papelão
Pesquisa da prefeitura diz que os carroceiros de SP são homens (90%), com idade entre 41 e 55 anos (48%) e nascidos na cidade (23%)
GUSTAVO FIORATTI
DA REVISTA DA FOLHA
Adquirir uma carroça em São
Paulo é uma experiência. Por
indicação de um carroceiro negro, alto, forte e sem os dentes
da frente, vou comprar a minha
em um tal de Alemão. A "loja"
do Alemão fica escondida sob
uma ponte, no Bom Retiro. Alemão é um homem com cerca de
1,65 m, branco, cabelos claros,
barba cerrada, roupas encardidas. Uma boa carroça ali custa
R$ 250, um conjunto de ferro
que pesa 90 kg. Fico com ela.
Um outro carroceiro aparece
tão logo empunho o carrinho.
"Tá começando?", ele questiona. Digo que sim e aproveito
para pedir dicas de onde poderia vender papelão e onde dormir. Ele me recomenda o albergue Dom Bosco, no Bom Retiro.
"Lá tem até chuveiro com água
quente", completa.
Vou para a porta do albergue
Dom Bosco às 8h da terça-feira,
dia 8 de abril, sem a carroça. Espero, do lado de fora, até as
13h30, para falar com a assistente social. Ela dá as caras,
acompanhada de um segurança. Diz que só há vaga para carroceiros. "Minha carroça está
em outro lugar", esclareço.
A assistente estranha o fato
de eu ter "boa aparência", apesar da barba crescida e da camiseta encardida. Para conseguir
minha vaga, respondo a várias
perguntas. Como soube do albergue? Há quanto tempo estou em situação de rua? Onde
meus pais moram? Não poderia ficar na casa de amigo? Bebo
ou uso drogas?
Sou aceito depois de meia hora de conversa. Estou agora
bem próximo de um grupo que,
segundo pesquisa da prefeitura, de 2005, é formado principalmente por homens (90%),
com idade entre 41 e 55 anos
(48%), nascidos na própria cidade (23%).
Ainda desconfiada, a assistente inicia uma breve explicação sobre a rotina no abrigo. É
um lugar onde vivem cerca de
50 pessoas. Alguns conselhos
são repetidos: "Estamos oferecendo uma facilidade. Não é para se acomodar, se tornar dependente dessa oferta"; "É importante manter coisas de valor
trancadas no armário. Não deixe nada espalhado nem no banheiro"; "Não chegue bêbado
nem alterado por drogas. Não
chegue após as 22h, a não ser
que tenha autorização." Por último, diz que não dão refeições.
Paramos em frente ao espaço
onde vou passar as próximas
três noites: uma cama de colchão nu e um armário vazio.
Momentos depois, sou liberado
da conversa para, enfim, buscar
minha carroça.
Às 22h, as luzes se apagam.
Uma gravação de quase meia
hora com repetições do "Pai
Nosso", da "Ave Maria" e de outras orações sinaliza a hora de
dormir. No escuro, o silêncio é
quebrado pelo choro de uma
criança, pelo trem que passa ao
lado e por roncos.
Na manhã seguinte, somos
despertados às 6h pelas mesmas orações. Há fila nos banheiros. Deixo o albergue às
7h30.
Meu roteiro matinal passa
pelos bairros de Higienópolis,
Cerqueira César e Pinheiros.
Vou observando lixos e caçambas. Há pouco material. Vejo
outros carroceiros passarem
com papelões assentados sobre
o fundo de suas carroças. Sou
um concorrente, mas muitos
me cumprimentam com um
aceno de mão.
É hora de batalhar por mercadoria: arrisco pedir caixas em
supermercados. Mas todos já
têm acordos com outros carroceiros. Chego à avenida dr. Arnaldo todo suado, com não
mais do que cinco ou seis caixas
encontradas ao acaso.
Sigo, com uns 10 kg a mais
nas costas. Meu destino é a rua
Oscar Freire, nos Jardins. Na
alameda Lorena, o segurança
de uma loja de roupa assobia
para me oferecer uma carga de
papelão.
Depois de uma hora de caminhada, chego, enfim, à porta do
sucateiro. São 13h30 e há uma
fila de quatro carroças. Chega a
minha vez. Vou empilhando todo aquele papelão com dificuldade. Consegui reunir quase 45
kg, mas calculo que mais de 5 kg
tenham sido desperdiçados pelo chão da sucataria, na pressa
imposta pelos funcionários.
Saio com R$ 7,20, o resultado
de quase seis horas de trabalho.
Na descida até o Bom Retiro,
começa a chover forte. A chuva
traz certo alívio. Ameniza o calor. A cortina d'água parece
barrar a poluição dos escapamentos. O sol volta a dar as caras no fim da rua Consolação.
Chego à beira de minha cama
exausto às 18h30, depois de
percorrer 17,4 km. Sinto muita
dor nas pernas, sobretudo no
joelho.
Último dia
Nos momentos finais da reportagem, ando mais tranqüilamente pelas ruas do Bom Retiro e, no caminho, vou encontrando vários outros carroceiros. Todos erguem a mão, me
cumprimentando. Retribuo,
mais como um adeus do que como um aceno.
Volto às 16h para o albergue,
para pegar minhas coisas. Entrego a chave do armário junto
com os lençóis. Alguns dos que
passam por lá nem isso fazem.
Simplesmente desaparecem.
É o momento de me despedir
do personagem carroceiro.
Deixo a carroça numa garagem,
após percorrer 16,7 km. Somadas as andanças dos três dias de
trabalho, percorri exatos 49,2
km. Desta experiência fica este
relato, um testemunho de
quem sobreviveu 72 horas na
pele de um homem-cavalo.
Texto Anterior: Gilberto Dimenstein: Aventuras radicais Próximo Texto: Frase Índice
|