São Paulo, domingo, 27 de junho de 2004

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Gêmeas se revêem após décadas

AURELIANO BIANCARELLI
DA REPORTAGEM LOCAL

A casa simples no Jardim Vitória tem duas novas moradoras desde janeiro, mas são tão quietas que os vizinhos nem perceberam.
São as gêmeas Ruth e Raquel, de idade ignorada, entre 54 e 64 anos. "Minha mãe diz que eu tenho 11 anos", repete Ruth. As duas têm distúrbio mental, não são agressivas, poderiam ter convivido com a família.
Quando tinha 18 anos, Ruth saiu pelo portão e desapareceu. Foi encontrada 20 anos depois, no hospital psiquiátrico de Itapira. Um dia se lembrou do nome do pai e de Franco da Rocha, onde morava. A família foi achada.
Raquel estava internada no Juquery, na mesma cidade, fazia 36 anos. Já tinha recebido alta, mas não tinha para onde ir. Fazia parte do enorme contingente de pacientes que podem voltar para casa, mas não têm casa. Até que a irmã Rebeca, 50, veio do Vale do Ribeira, se instalou na mesma cidade e recebeu a irmã.
"Como estava cuidando de uma, podia cuidar da outra." E Ruth foi trazida de Itapira. A filha de Rebeca, Larissa, nasceu com paralisia cerebral, tem 20 anos, e não responde a nenhum estímulo. As três dormem num quarto.
"As gêmeas brigam por causa das bonecas e dos brinquedos, mas logo fazem as pazes e ficam de mãos dadas", diz Rebeca. "Quem me ajuda é o Nenê", diz Rebeca. Nenê é Osvaldo Donizete, 38, irmão das três, travesti e cabeleireiro, que se dedica às gêmeas e à sobrinha com carinho de emocionar. Recebe os jornalistas com bolo de fubá, servido pelas irmãs.
Depois de 36 anos internadas, elas podem ter um gesto como este. "Elas pararam na adolescência", diz Hilda Figueiredo Cabrera, assistente social do Juquery.
Ruth e Raquel são exemplos de que milhares de pacientes trancados em "masmorras" psiquiátricas poderiam estar com a família. Acompanhadas, elas visitam parentes e se divertem no passeio de ônibus. Tomam medicamentos três vezes ao dia, retirados no Juquery e oferecidos com cuidado e precisão pelo irmão Nenê.

Quem quer pacientes?
Encontrar famílias dispostas a recepcionar os doentes não é fácil. Segundo a diretora do núcleo assistencial do Juquery, Maria Alice Scardoelli, dos 1.062 pacientes, 130 poderiam ter alta, e 61% têm alguma referência familiar, principalmente irmãos. Mais de 50% não recebe qualquer visita.
"Formamos um grupo de [orientação às] famílias recentemente que, em vez de dizer "leva", começa dizendo "chega mais perto'", diz a diretora. Depois disso, no entanto, só seis pacientes voltaram para casa.
Scardoelli diz que as justificativas são as mais diversas, mas o menor problema é dinheiro. Alguns alegam idade avançada, outros fingem não ser parente. "Há uma irmã de um deles que fingia ser esposa do irmão que vem visitar", diz. "Se a família não estiver acolhendo, não vou colocar em um ambiente hostil."
"Eles falava [sic] que depois levava para casa, e foi passando", diz seu Zezinho, 81, 60 deles no Juquery, irmãos vivos.
O governo de São Paulo promete, em três anos, achar um lugar para os residentes do Juquery e fechar as portas da área asilar.


Colaborou Fabiane Leite


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