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URBANIDADE
O motoboy de Deus
GILBERTO DIMENSTEIN
COLUNISTA DA FOLHA
Euclides Ferreira da Silva
gostava de beber, usar drogas e andar de motocicleta em
alta velocidade -tudo ao mesmo tempo. Freqüentemente,
misturava os três prazeres e os
conduzia na velocidade de 140
km/h, ziguezagueando entre os
automóveis. "Percebi que, mais
cedo ou mais tarde, iria me arrebentar." Suspeitava que, lá no
fundo, talvez quisesse mesmo se
arrebentar. "Minha vida era vazia, nada tinha sentido, precisava encher minha cabeça com o
perigo para ter emoção."
Nem precisa misturar moto
com drogas e bebida. Estimativas oficiais indicam que, a cada
30 horas, um motoboy morre na
cidade de São Paulo. Nessa tribo
de vulneráveis de 150 mil integrantes, cujo dia é comemorado
hoje -o dia do motociclista-,
ele decidiu percorrer um caminho diferente. Foi buscar na religião uma explicação para o fato
de, apesar de ter se exposto tanto
e por tanto tempo, ter sobrevivido. "Mudei", orgulha-se.
Começou a estudar a Bíblia,
noivou, casou, teve uma filha,
batizada de Sara -a mulher de
Abraão, que, apesar de muito
velha, engravidou. Prestou vestibular e entrou numa faculdade
de teologia.
Neste dia do motociclista, sem
festas, pelo menos ele se sente em
condições de comemorar suas
conquistas. Dos velhos tempos,
só manteve a moto, na qual a Bíblia passou a acompanhá-lo
quase como um capacete. "Quis
ir a fundo nos estudos, assim como ia a fundo quando estava em
alta velocidade, com a cabeça tomada pelo álcool e pela droga."
Era uma fé solitária e silenciosa. Até que, certo dia, viu um colega, ensangüentado e gemendo,
estirado na rodovia Raposo Tavares. "Pensei que poderia ter sido comigo." Ao chegar à empresa, sentiu vontade de ler um trecho da Bíblia e interpretá-lo para seus colegas. "Muitos acharam bobagem." Manteve, porém, o ritual pelo menos uma
vez por dia. "Tinha de ser rápido, estávamos sempre correndo." Com o tempo, ganhou uma
audiência fiel. Os trechos bíblicos deveriam se relacionar com
questões de valorização da vida.
"Apesar daquela correria danada, muitos começaram a prestar
atenção."
Na mais visível e barulhenta
das tribos paulistanas, Euclides
inaugurou uma nova modalidade na paisagem paulistana -o
motoboy-pregador.
E-mail - gdimen@uol.com.br
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