São Paulo, segunda-feira, 27 de agosto de 2001

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Moacyr Scliar

No mundo das aparências


1. Vivendo de ilusões
 Procon apura se sardinhas, achocolatados e bronzeadores tiveram redução de peso mantendo o preço.
Dinheiro, 22.ago.2001

Em breve o procedimento se tinha generalizado. O papel higiênico foi encurtando cada vez mais, até que por fim sumiu. Nas caixas, o número de biscoitos reduziu-se progressivamente, chegando a zero. Nos frascos de bronzeadores já não havia bronzeador algum. Em compensação, as embalagens estavam cada vez mais sofisticadas. E o preço era mantido. Chamados a explicar o fenômeno, os fabricantes dos produtos disseram que se tratava de uma nova estratégia de marketing. O importante, afirmaram, é a impressão que a coisa causa, não a coisa em si. E apontaram várias vantagens do novo procedimento. Sem bronzeador, as pessoas não iriam mais à praia; não correriam, portanto, o risco de afogamento. Sem biscoitos, as chances de obesidade diminuiriam muito. E, finalmente, na ausência de papel higiênico, os consumidores teriam de levar para o banheiro jornais e revistas, que certamente seriam lidos antes do uso. Com grande aumento do nível cultural.

2.Brinquedos perigosos
 Brinquedo-bomba em San Sebastian.
Mundo, 21.ago.2001

O terrorista preparou cuidadosamente o brinquedo-bomba, colocando no carrinho o material explosivo. Pequena quantidade, mas o suficiente para matar uma ou duas pessoas.
Terminada a tarefa, saiu para pesquisar as redondezas. Queria um lugar onde o carrinho pudesse ser deixado -como que por esquecimento. Achou: tratava-se de um bar bastante frequentado por crianças e adultos. Abandonado na frente do estabelecimento, o carrinho certamente seria recolhido por alguém.
Voltou para casa e, assim que abriu a porta, sentiu o coração parar.
Ali estava o seu filho, de seis anos, brincando com o carrinho. E sorrindo: olha só, papai, o que ganhei.
Tentando manter a calma, ordenou que o garoto colocasse o objeto, muito devagar, em cima da mesa. Sem entender o terror do pai, o garoto fez, no entanto, o que ele pedia.
- Agora, sai -comandou o homem.- Vai para a rua.
Já agora em lágrimas, o menino saiu correndo. O terrorista aproximou-se do carrinho, examinou-o. Não, não era o seu carrinho. Era outro. Igual, mas não o seu.
- Você viu o que comprei para o nosso filho? -disse uma voz.
Voltou-se: era a esposa, que o mirava, sorridente.
O terrorista começou a chorar baixinho. A mulher não disse nada. Deve ser saudade da infância, foi o que pensou. E até o diria para o marido, mas ele estava com pressa: foi até o quarto, pegou um embrulho com certo carrinho e, sem se despedir, saiu.
Tinha muito o que fazer.


Moacyr Scliar escreve nesta coluna, às segundas-feiras, um texto de ficção baseado em notícias publicadas no jornal.



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