São Paulo, Quarta-feira, 27 de Outubro de 1999
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VELÓRIO

Familiares e amigos de menor morto na Febem reclamam Justiça durante enterro

"Américo era bom", diz irmão caçula
Evelson de Freitas/Folha Imagem
Zelita de Oliveira (esq.), mãe de Américo de Oliveira, o irmão Dione e o padre Júlio Lancellotti em velório na Vila Alpina


CYNARA MENEZES
especial para a Folha

O que vai ser do menino Dione, que não tem pai e cujo irmão adolescente o via ontem pela última vez, com o rosto coberto de hematomas, através do vidro de um caixão?
A imagem do menino de 11 anos, que não parou de chorar nem um minuto sequer mesmo depois que o corpo do irmão baixou à sepultura, foi o que ficou do enterro de Américo Nonato de Oliveira, morto anteontem, aos 17 anos, na rebelião da Febem Imigrantes.
Havia pouca gente, mas o suficiente para lotar a capela do Cemitério da Vila Alpina, onde aconteceu o velório. Eram amigos de Américo da Casa do Menor e membros da Pastoral do Menor, que sustenta a família em uma casa de um cômodo só no bairro paulistano da Mooca.
A mãe, Zelita, também chorava muito e não falou. A irmã, Graziela, 18, desmaiou e não pôde acompanhar o enterro. Dione repetia: "Meu irmão, meu irmão". Como era o Américo, Dione? "Era bom."
Em um canto, o primogênito da família, que se identificou apenas como Oliveira, murmurava sua revolta contra a "injustiça do sistema" e especulava sobre o destino do caçula da família. "Ele fala que quer ser igual a mim, trabalhar, estudar. Não sou muita coisa, não, mas o que eu faço é o certo."
Oliveira, 26, é agente de segurança e vive em um bairro afastado da mãe e dos meio-irmãos -é filho de Zelita com outro homem, que a abandonou. O pai dos meninos morreu em uma tentativa de assalto. Oliveira só soube que Américo estava envolvido com drogas quando, diz ele, "já era tarde".
Não culpa a mãe, doméstica, pelo que aconteceu. "Minha mãe sempre batalhou. É a "companheiragem" que influencia. Se você tiver cabeça fraca, então, é pior. Queria tanto que ele jogasse no meu time, por que foi jogar no time errado?"
O padre Júlio Lancellotti, da Pastoral do Menor, teve que conter as lágrimas quando exortou: "Américo, que os anjos te conduzam ao paraíso."
Lancellotti e os meninos que estavam no velório falavam da intenção do menor de se internar em uma clínica de desintoxicação e mudar de vida.
"Eu disse para o Américo: "quer que eu mande colocar esse dente que está faltando aí na tua boca? Então em troca você vai se internar'", contou o padre Júlio. "Ele aceitou, mas a burocracia da Justiça não deixou que tirássemos ele de lá a tempo."
"O Américo era um moleque calmo", disse W., 17, o amigo que o havia encaminhado à pastoral no segundo semestre deste ano. "Era raro ele brigar comigo", disse a namorada, S.R.L., 24.
"O Américo ia nas palestras da Casa do Menor e dizia que queria parar com o crack. Era alegre", disse T., 15, ex-viciada que esteve internada às custas da Pastoral, como queria Lancellotti para Américo.
"Nós é que pagamos a recuperação, não é o Estado", disse o padre. "O Américo era um menino com problemas neurológicos, tomou Gardenal (medicamento controlado) na infância, tinha dependência química em crack e ultimamente estava usando álcool. Não era um jovem perigoso, agressivo."
Quando o caixão de Américo foi coberto pela terra vermelha, o padre deu a deixa para a crítica social, puxando o coro para o hino da pastoral, em cuja letra irônica tropeçavam os presentes: "Dizem que este país é feliz porque o povo canta na rua. Dizem que o país não vai mal porque o povo ainda faz Carnaval."
Márcia e Valdir de Oliveira, um casal de olhar assustado, observava tudo de longe. São os pais do menor B.M.O., 15, interno da Febem Imigrantes, acusado de participar de sequestro.
"Na Febem tem 20% de meninos perigosos e 60% de "laranjas", garotos que entraram numa "roubada", como o meu. Só que lá misturam tudo, os bons e os ruins. Meu filho está sendo ameaçado porque é bom. Tenho medo de que seja o próximo", disse Valdir.






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