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Salas de aula devem ser usadas para convivência
do Conselho Editorial
O Liceu de Artes e Ofício, da
Bahia, recolhia parte de sua renda consertando carteiras escolares, destruídas pelos alunos. A
cada mês, chegavam à marcenaria caminhões e mais caminhões
com restos de mesas e cadeiras.
Investindo contra sua própria
fonte de renda, o Liceu, apoiado
pela Secretaria Estadual da Educação, criou com artistas profissionais uma peça de teatro para
convencer os alunos a respeitar a
escola, ensiná-los o valor não
apenas do saber da coisa pública.
Para montar o espetáculo, eles
investigaram a percepção dos estudantes. Promoveram oficinas
em que os alunos quebravam as
cadeiras e diziam o que lhes passava pela cabeça.
As frases soltas durante a quebradeira desnudavam o ressentimento com a escola em que falta
quase tudo - de professor a giz,
num espaço que reforça a sensação de marginalidade.
Mas logo ficaria nítido que os
alunos viam nas carteiras um jeito de descontar os vários ressentimentos, moldados em diferentes graus de violência vivida fora
da escola -a violência da falta
de lazer, do desemprego, dos
pais separados, muitos viciados
em bebida, da selvageria doméstica, da droga, dos assaltos.
Dessas oficinas surgiu, em
1995, "Cuida Bem de Mim", encenada para os alunos baianos;
para a imensa maioria deles, era
a primeira vez que iam a um teatro. A cadeira transformou-se,
ali, não na questão central, como
se planejava, mas apenas em um
símbolo, uma síntese.
As platéias acompanham silenciosas e emocionadas sua
própria vida no palco, rindo,
chorando, gritando.
Em pouco tempo, começou a
diminuir o número de carteiras
destruídas. A peça fez o aluno
perceber que não seria ali, na escola, que resolveriam seus ressentimentos -justamente a escola deveria ser o espaço para
construção de perspectiva.
O roteiro de "Cuida Bem de
Mim" serve para entender a violência nas escolas, um tema que
entrou na agenda brasileira, com
o registro, em todo país, de cenas
de vandalismo, brigas entre alunos, o tráfico de drogas em sala
de aula, professores ameaçados,
prédios destruídos.
Até pouco tempo, violência
nas escolas era assunto, aparentemente, restrito a paisagem dos
bairros pobres das grandes cidades americanas, onde se instalaram detectores de metais para
investigar as mochilas dos alunos; as gangues, muitas vezes, resolviam suas diferenças no pátio
ou nos corredores.
Tanto nos EUA como aqui
ocorria apenas o óbvio e previsível: a escola não é uma ilha de
paz, capaz de conter a violência a
seu redor. E, muitas vezes, ela
apenas reforça a sensação de
marginalidade, gerando ainda
mais ressentimento.
Rapidamente foram se disseminando experiências nos EUA,
baseada no óbvio -além de trabalhar o aluno dentro da escola,
deveriam trabalhar além dos
muros, atraindo a família, num
envolvimento da comunidade.
Comunidade, além das famílias, significaria empresários capazes de fazer doações, líderes
religiosos, com seu poder de mobilização, associações de voluntários, faculdades que treinassem os professores, produzissem
material didático, repensassem o
currículo, associações que ajudassem a lidar com o abuso de
álcool. Significaria também
acordos com a polícia, criando
um policial habilitado a lidar
com o ambiente escolar.
Numa escola do bairro do Harlem, em Nova York, um voluntário mestre em caratê se dispôs a
ensinar lutar marciais. E atraiu
integrantes de gangues, interessados em derrotar seus rivais.
O professor foi, aos poucos,
treinando-os para entender o
que era, de fato, força, coragem,
ousadia. Muitos deles foram,
mais tarde, contratados para separar brigas.
Em alguns bairros de Nova
York, Boston ou Chicago, contaminados pela violência, o único
prédio não pichado é o da escola.
São justamente lugares que adotaram a comunidade e foram
adotados por ela.
Deixaram de ser escolas para
se transformar em centros de
convivência, abertos dia e noite
não só para atividades de complementação como esporte e artes, mas aos irmãos e familiares.
São oferecidos cursos de computação aos pais, inglês, ajuda
jurídica para abrir um negócio,
regularizar documentos, até sessões dos alcoólatras anônimos e
tratamento de drogas.
O retorno é a paz, simbolizada
na ausência da pichação. O sucesso da receita é baseado na
convicção de que não existe uma
relação direta entre pobreza e
violência. Se houvesse, países
mais pobres seriam mais violentos -as estatísticas mostram
que não existe essa ligação.
A ligação é, em essência, entre
violência e sensação de marginalidade, de rejeição, de estar expulso -o que se via nas frases
dos alunos baianos.
Quando a escola deixa de ser
um aglomerado de salas de aulas
e vira um espaço público de convivência, ela aumenta o capital
social de uma comunidade -capital social é a rede de conexões
humanas (família, igreja, associações, clubes) que oferecem
um sentimento de pertencimento, de identidade, de que o indivíduo é parte integrante.
Estatísticas mostram que,
quanto maior o capital social de
uma comunidade, menor a taxa
de violência. Nos países pobres e
muito religiosos (Índia, por
exemplo), a religião é o fator de
integração a uma ordem. Daí o
sentido de pertencimento.
Na periferia de Brasília, atacada pelas gangues, escolas ficam
abertas não apenas nos finais de
semana, mas de madrugada,
promovendo torneios esportivos -justamente no horário da
pancadaria, motivada, muitas
vezes, pela simples falta de lazer.
O charme da gangue é, muitas
vezes, oferecer ordem e uma
idéia de que o jovem marginalizado tem um grupo solidário; a
arma dá-lhe a sensação de ser alguém, ter valor. É, na prática, o
mesmo papel da religião.
O processo de pacificação não
se limita além dos muros, obviamente. A escola é mais um ingrediente de ressentimento quando
entra no caldeirão do ressentimento. Professores desmotivados, currículos desadaptados da
realidade, falta de atividades extracurriculares, banheiros entupidos, salas lúgubres.
A repetência, na prática, chama o aluno de "burro", "incapaz", "deficiente". Gera, de um
lado, a evasão e, de outro, a raiva,
descontada em algum lugar. Seja
nele próprio, num processo de
autodestruição por meio do álcool e das brigas, seja nos outros.
Quando a escola promove, dá
perspectiva, a comunidade acaba por reconhecer e se engajar.
Experiências no Brasil mostram
que, em lugares devastados pela
violência, os chefes de gangues
preservam a escola; reconhecem
ali um espaço de progresso de
seus filhos ou irmãos. Nesses casos, torna-se, de fato, numa ilha
de paz, respeitada pelas gangues.
A receita da paz é o que está
por traz da mais importante experiência, hoje, no Brasil, para
amainar a violência escolar. É o
programa, em São Paulo, batizado de "Parceiros do Futuro", que
envolve várias secretarias estaduais e municipais, organismos
não-governamentais, empresários e sindicatos.
O programa vai manter as escolas abertas nos finais de semana, para atividades culturais, artísticas e esportivas, pedindo que
a comunidade transforme o espaço em centro de convivência.
Essas operações são urgentes.
Urgente porque a boa notícia do
aumento da matrícula, queda da
evasão, expansão do ensino médio (ex-colegial) também pode
ser uma má notícia.
A escola era, até certo ponto,
protegida da violência por causa
da evasão. Quando iam ficando
mais velhos, o sistema tratava de
expulsá-los, a selvageria ficava
do lado de fora dos muros.
Com o aumento da matrícula,
o ressentimento que está lá fora
entra com mais força para dentro, trazendo o risco de os pátios
virarem praças de guerra.
(GILBERTO DIMENSTEIN)
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