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São Paulo, quinta-feira, 27 de novembro de 2003

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PASQUALE CIPRO NETO

"Mesmo mais caro..."

Tem sido comum nos vestibulares a abordagem da coerência textual. Trata-se do nexo que deve haver entre as idéias apresentadas num texto.
Um dos itens mais importantes para a consecução da tão desejada coerência é o emprego adequado dos conectivos. Numa frase como "Corri muito, mas não alcancei o ônibus", por exemplo, o emprego do conectivo adversativo "mas" é adequado, uma vez que existe adversidade entre o que motiva a pessoa que corre (alcançar o ônibus) e o resultado do processo (não alcançar o ônibus).
Pois bem. Suponha que um jornal faça um teste comparativo entre dois automóveis que, embora pertençam ao mesmo segmento de mercado, apresentam preços significativamente diferentes. A priori, quem procura uma justificativa para a diferença de preço pode supor que o mais caro seja tecnologicamente mais avançado, mais equipado etc., não?
Feita a análise dos dois carros, constata-se que o mais caro é inferior. Nesse caso, seria perfeitamente cabível dizer algo como "Embora seja mais caro, X perde para Y" ou "Embora seja mais caro, X é inferior a Y". Não foi o que se viu recentemente no título de um dos nossos jornais. "Mesmo mais caro, X supera Y", afirmava o periódico. Convenhamos, caro leitor: se não é incoerente, esse título é no mínimo estranho.
Como o senso comum diz que o que é mais caro tende a ser melhor, mais avançado etc., não parece coerente dizer que, embora seja mais caro, X é melhor.
Por falar em "mesmo", convém lembrar que o "Aurélio" não dá a essa palavra o sentido de "embora" ou "apesar de"; o "Houaiss" registra (como equivalente de "embora", "apesar de") a expressão "mesmo que", de que dá este exemplo: "Mesmo que advertido sobre roubos na Europa, várias vezes andou com a carteira à mostra". O uso vivo, no entanto, parece ter consagrado a forma simplificada "mesmo" ("Mesmo advertido sobre roubos...").
É conveniente lembrar também que a expressão "mesmo se", muito usada na linguagem oral e em diversos registros escritos, é outra que não encontra abrigo nos nossos dicionários. De acordo com o que se vê nessas obras, uma frase como "Haverá jogo, mesmo se chover" deve ser trocada por "Haverá jogo, mesmo que chova".
Voltando à questão da (in)coerência, veja este outro exemplo, também tirado de texto jornalístico: "O Santos ganhou mais uma de virada, em plena Vila Belmiro". Que lhe parece? Dizem as lendas do futebol que, quando jogam em casa, times fortes são favoritos. Até prova em contrário, o time do Santos é forte, e a Vila Belmiro é a casa dessa gloriosa equipe. Não é de estranhar, pois, que o Santos ganhe em casa, qualquer que seja seu adversário.
É incoerente, portanto, o uso da expressão "em plena Vila Belmiro" para falar de uma vitória do esquadrão peixeiro. Essa expressão seria coerente em caso de derrota em casa do grande alvinegro praiano: "O Juventus derrotou o Santos em plena Vila Belmiro" (não é pecado sonhar, é?).
As observações feitas nesta coluna são importantes para os vestibulandos e para aqueles que se dedicam à sempre difícil tarefa de escrever. O emprego criterioso dos elementos de conexão e a análise do valor semântico de certas expressões são muito importantes para que não se construam textos incoerentes. É isso.


Pasquale Cipro Neto escreve nesta coluna às quintas-feiras.
E-mail - inculta@uol.com.br


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