São Paulo, quinta-feira, 27 de novembro de 2008

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entrevista

Saques são forma de protesto, diz psicanalista


Há um pressuposto de que serei protegido. Se não sou, eu vou protestar


Isso não é refletido. Quando a autoridade falha, atuamos

RAFAEL CARIELLO
DA REPORTAGEM LOCAL

Para Joel Birman, 62, professor titular de teoria psicanalítica da Universidade Federal do Rio de Janeiro, os saques desordenados que se seguiram às inundações em Santa Catarina são uma forma de protesto da população local contra a falha na proteção que ela esperava receber do Estado.
Trata-se, claro, de uma expectativa de proteção, que independe de a causa da catástrofe ser natural e fugir, em parte, ao controle das autoridades.
A reação é aguda em momentos de crise, como o atual, mas ajuda a explicar certa desordem "endêmica" na relação da sociedade brasileira com o Estado e os bens públicos.
"Isso não é uma coisa refletida.
Quando a autoridade falha, atuamos. Se pegarmos serviços e bens como o metrô ou os telefones públicos, quando o Estado os gere de maneira eficaz, cuida deles, e eles funcionam, a reação das pessoas é preservá-los", diz Birman.
"Há um pressuposto de que serei protegido. Se não sou, eu vou protestar contra a não-proteção pelo saque, por exemplo. É um protesto contra o Estado que me deixou desamparado."

 

FOLHA - É possível explicar os saques para além das razões de necessidade?
JOEL BIRMAN
- Uma situação dessas, uma calamidade pública ligada a uma causa natural, gera nas pessoas uma sensação de insegurança e de desamparo.
É uma experiência psíquica originária, a do desamparo, que mantemos dentro de nós a vida inteira, enquanto tentamos nos agarrar a alguns signos de proteção, sejam psíquicos, sociais ou políticos, que nos dêem alguma forma de abrigo.
No caso de uma calamidade pública, todas essas camadas de proteção que foram construídas caem por terra.
Diante da perda dessas proteções, todo o desamparo fundamental aparece e também um movimento de "salve-se quem puder". O ato do saque é uma espécie de reação de massa desordenada.
A proteção que elas esperavam que alguém lhes fosse dar -o Estado brasileiro, catarinense, a prefeitura- falhou. É como se perdessem o compromisso com as regras que norteiam as relações.

FOLHA - Cumprir as leis está ligado à expectativa de proteção?
BIRMAN
- O cumprimento das regras sociais está ligado a uma premissa básica de que seremos protegidos. Na medida em que o Estado falha, partem para o "salve-se quem puder".
Isso não é uma coisa refletida. Quando a autoridade falha, atuamos. Se pegarmos serviços e bens como o metrô ou os telefones públicos, quando o Estado os gere de maneira eficaz e eles funcionam, a reação das pessoas é preservá-los. A gente não os destrói, não os quebra.
Quando o Estado tem uma atuação de não preservá-los, de não oferecer esses serviços com alguma qualidade, as pessoas têm um compromisso menor. Há um pressuposto de que serei protegido. Se não sou, eu vou protestar contra a não-proteção pelo saque, por exemplo.

FOLHA - Esses gestos são uma espécie de protesto?
BIRMAN
- É um protesto contra o Estado que falhou e os deixou desamparados.

FOLHA - Essa análise parece ir além dos saques. Podemos pensar sobre a relação geral da sociedade brasileira com o Estado.
BIRMAN
- Exatamente. O problema é que essa desordem que aflora não tem norteamento político.
As instâncias políticas ficam sempre com muito medo de situações como essa em Santa Catarina. Porque ela é uma espécie de passagem ao ato de uma descrença na soberania política.

FOLHA - E, do ponto de vista mais "agudo", isso não é específico do Brasil, não é?
BIRMAN
- Exatamente. Em Nova Orleans, depois da inundação causada pelo furacão Katrina, aconteceu a mesma coisa. No momento em que o soberano -George W. Bush- demora para reagir, acontecem as manifestações. É por isso que o bom político, quando acontecem catástrofes dessas, imediatamente aparece. Para dizer: "Estou aqui para protegê-los.
O Estado vai dar aquilo de que vocês precisam".


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