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entrevista
Saques são forma de protesto, diz psicanalista
Há um pressuposto de que serei protegido. Se não sou, eu vou protestar
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Isso não é refletido. Quando a autoridade falha, atuamos
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RAFAEL CARIELLO
DA REPORTAGEM LOCAL
Para Joel Birman, 62, professor titular de teoria psicanalítica da Universidade Federal do Rio de Janeiro, os
saques desordenados que se
seguiram às inundações em
Santa Catarina são uma forma de protesto da população
local contra a falha na proteção que ela esperava receber
do Estado.
Trata-se, claro, de uma expectativa de proteção, que
independe de a causa da catástrofe ser natural e fugir,
em parte, ao controle das autoridades.
A reação é aguda em momentos de crise, como o
atual, mas ajuda a explicar
certa desordem "endêmica"
na relação da sociedade brasileira com o Estado e os
bens públicos.
"Isso não é uma
coisa refletida.
Quando a autoridade falha,
atuamos. Se pegarmos serviços
e bens como o
metrô ou os telefones públicos, quando o
Estado os gere
de maneira eficaz, cuida deles,
e eles funcionam, a reação
das pessoas é
preservá-los", diz Birman.
"Há um pressuposto de
que serei protegido. Se não
sou, eu vou protestar contra
a não-proteção pelo saque,
por exemplo. É um protesto
contra o Estado que me deixou desamparado."
FOLHA - É possível explicar os
saques para além das razões de
necessidade?
JOEL BIRMAN - Uma situação
dessas, uma calamidade pública ligada a uma causa natural, gera nas pessoas uma
sensação de insegurança e de
desamparo.
É uma experiência psíquica originária, a do desamparo, que mantemos dentro de
nós a vida inteira, enquanto
tentamos nos agarrar a alguns signos de proteção, sejam psíquicos, sociais ou políticos, que nos dêem alguma
forma de abrigo.
No caso de uma calamidade pública, todas essas camadas de proteção que foram
construídas caem por terra.
Diante da perda dessas proteções, todo o desamparo
fundamental aparece e também um movimento de "salve-se quem puder". O ato do
saque é uma espécie de reação de massa desordenada.
A proteção que elas esperavam que alguém lhes fosse
dar -o Estado brasileiro, catarinense, a prefeitura- falhou. É como se perdessem o
compromisso com as regras
que norteiam as relações.
FOLHA - Cumprir as leis está ligado à expectativa de proteção?
BIRMAN - O cumprimento
das regras sociais está ligado
a uma premissa básica de
que seremos protegidos. Na
medida em que o Estado falha, partem para o "salve-se
quem puder".
Isso não é uma coisa refletida. Quando a autoridade falha, atuamos. Se pegarmos
serviços e bens como o metrô
ou os telefones públicos,
quando o Estado os gere de
maneira eficaz e eles funcionam, a reação das pessoas é
preservá-los. A gente não os
destrói, não os quebra.
Quando o Estado tem uma
atuação de não preservá-los,
de não oferecer esses serviços com alguma
qualidade, as
pessoas têm um
compromisso
menor. Há um
pressuposto de
que serei protegido. Se não sou,
eu vou protestar contra a
não-proteção
pelo saque, por
exemplo.
FOLHA - Esses
gestos são uma espécie de protesto?
BIRMAN - É um
protesto contra o Estado que
falhou e os deixou desamparados.
FOLHA - Essa análise parece ir
além dos saques. Podemos pensar sobre a relação geral da sociedade brasileira com o Estado.
BIRMAN - Exatamente. O
problema é que essa desordem que aflora não tem norteamento político.
As instâncias políticas ficam sempre com muito medo de situações como essa
em Santa Catarina. Porque
ela é uma espécie de passagem ao ato de uma descrença
na soberania política.
FOLHA - E, do ponto de vista
mais "agudo", isso não é específico do Brasil, não é?
BIRMAN - Exatamente. Em
Nova Orleans, depois da
inundação causada pelo furacão Katrina, aconteceu a
mesma coisa. No momento
em que o soberano -George
W. Bush- demora para reagir, acontecem as manifestações. É por isso que o bom
político, quando acontecem
catástrofes dessas, imediatamente aparece. Para dizer:
"Estou aqui para protegê-los.
O Estado vai dar aquilo de
que vocês precisam".
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