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COTIDIANO IMAGINÁRIO
Cápsula do tempo
MOACYR SCLIAR
"Febre de cápsulas do tempo: norte-americanos enterram recipientes lacrados contendo objetos para registrar passagem da história." Mundo, 16.dez.99.
Durante muitos anos ele cobiçou o relógio do pai. Um
magnífico Patek-Philippe, desses com corrente de ouro, uma
verdadeira jóia. Sonho vão: o
pai não se desfaria jamais do
relógio, comprado, segundo relatava com orgulho, com seu
primeiro salário.
Aí leu a notícia sobre cápsulas do tempo. E uma idéia lhe
ocorreu. Papai, disse, o milênio
vem aí, e nós deveríamos preparar uma cápsula do tempo.
Cápsula do tempo? O velho
não sabia do que se tratava.
Ele explicou que uma cápsula
do tempo é um recipiente com
vários objetos, destinados a
oferecer às gerações futuras
uma visão do passado. Alguma
coisa que, por assim dizer, perpetuaria a memória da família
deles.
O pai achou muito boa a sugestão. O rapaz então trouxe
um recipiente de plástico com
tampa. Começaram a colocar
coisas ali: uma escova de dentes, um sabonete, um copo, palitos, uma caneta esferográfica,
uma folha de papel. Em breve a
cápsula do tempo estava quase
cheia e o pai achou que podiam enterrá-la. Falta uma
coisa, disse o filho.
O relógio, claro. Faltava o relógio.
O pai reagiu com indignado
assombro à sugestão. O seu relógio, não. Qualquer coisa, menos o seu relógio. Com muita
paciência e habilidade, o jovem defendeu o seu ponto de
vista. Nada melhor, argumentou, do que um relógio, para
mostrar como se contava o
tempo. Além disso, seria um
objeto simbólico. Sem dúvida,
figuraria num grande museu,
com o nome do dono mencionado.
O pai acabou concordando.
Colocou o relógio na cápsula
do tempo, que foi devidamente
enterrada no quintal da casa.
Naquela mesma noite, o rapaz
foi lá, desenterrou o recipiente
e se apossou do relógio.
O pai, um homem doente, faleceu pouco depois desses eventos. Quanto ao relógio, simplesmente parou de funcionar. O
relógio, que por décadas nunca
falhara, já não trabalha. O rapaz o levou a vários relojoeiros.
Nenhum consegue desfazer o
mistério.
Ele continua carregando o
relógio consigo. Tem, no bolso,
uma cápsula do tempo. Do
tempo congelado, diz, com um
sorriso melancólico. Trata-se
de uma metáfora, claro. Porque o tempo verdadeiro, o tempo real, este continua passando. Como que marcado pelo tique-taque de algum relógio tão
invisível quanto inexorável.
O escritor Moacyr Scliar escreve nesta
coluna, às segundas-feiras, um texto de
ficção baseado em notícias publicadas no
jornal.
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