São Paulo, Segunda-feira, 27 de Dezembro de 1999


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COTIDIANO IMAGINÁRIO

Cápsula do tempo

MOACYR SCLIAR
 "Febre de cápsulas do tempo: norte-americanos enterram recipientes lacrados contendo objetos para registrar passagem da história." Mundo, 16.dez.99.
Durante muitos anos ele cobiçou o relógio do pai. Um magnífico Patek-Philippe, desses com corrente de ouro, uma verdadeira jóia. Sonho vão: o pai não se desfaria jamais do relógio, comprado, segundo relatava com orgulho, com seu primeiro salário.
Aí leu a notícia sobre cápsulas do tempo. E uma idéia lhe ocorreu. Papai, disse, o milênio vem aí, e nós deveríamos preparar uma cápsula do tempo.
Cápsula do tempo? O velho não sabia do que se tratava. Ele explicou que uma cápsula do tempo é um recipiente com vários objetos, destinados a oferecer às gerações futuras uma visão do passado. Alguma coisa que, por assim dizer, perpetuaria a memória da família deles.
O pai achou muito boa a sugestão. O rapaz então trouxe um recipiente de plástico com tampa. Começaram a colocar coisas ali: uma escova de dentes, um sabonete, um copo, palitos, uma caneta esferográfica, uma folha de papel. Em breve a cápsula do tempo estava quase cheia e o pai achou que podiam enterrá-la. Falta uma coisa, disse o filho.
O relógio, claro. Faltava o relógio.
O pai reagiu com indignado assombro à sugestão. O seu relógio, não. Qualquer coisa, menos o seu relógio. Com muita paciência e habilidade, o jovem defendeu o seu ponto de vista. Nada melhor, argumentou, do que um relógio, para mostrar como se contava o tempo. Além disso, seria um objeto simbólico. Sem dúvida, figuraria num grande museu, com o nome do dono mencionado.
O pai acabou concordando. Colocou o relógio na cápsula do tempo, que foi devidamente enterrada no quintal da casa. Naquela mesma noite, o rapaz foi lá, desenterrou o recipiente e se apossou do relógio.
O pai, um homem doente, faleceu pouco depois desses eventos. Quanto ao relógio, simplesmente parou de funcionar. O relógio, que por décadas nunca falhara, já não trabalha. O rapaz o levou a vários relojoeiros. Nenhum consegue desfazer o mistério.
Ele continua carregando o relógio consigo. Tem, no bolso, uma cápsula do tempo. Do tempo congelado, diz, com um sorriso melancólico. Trata-se de uma metáfora, claro. Porque o tempo verdadeiro, o tempo real, este continua passando. Como que marcado pelo tique-taque de algum relógio tão invisível quanto inexorável.


O escritor Moacyr Scliar escreve nesta coluna, às segundas-feiras, um texto de ficção baseado em notícias publicadas no jornal.


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