São Paulo, domingo, 28 de março de 2004

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DANUZA LEÃO

Um pouco de dor

Ela conseguiu fazer de sua vida uma vida legal, como sempre achou que devia.
Já de manhã o humor é sempre ótimo, mesmo depois de uma olhada rápida nas primeiras páginas dos jornais; dar o café para duas crianças pequenas não é exatamente o paraíso sobre a terra, mas ela consegue, sorrindo, e se o marido pergunta sobre as meias, é capaz de responder alegremente, pois sabe que sem marido pode ser pior ainda. Mas não vamos exagerar: maridos são capazes de tudo, até de comentar o assassinato do líder do Hamas. Mas aí já seria o caso de outro assassinato: o dele.
Como mulher moderna que é, ela trabalha e põe em prática tudo que lê nas revistas femininas: maquiagem leve, salto não muito alto, bom humor, interesse, participação e competência, claro. Para estar sempre em dia com os avanços da profissão, se atualiza sempre, por meio da leitura e da internet. A que horas? Quando o marido e os filhos já estão na cama, depois de terem comido um adorável jantar feito por ela -um peitinho de frango com ervas, legumes no vapor e uma salada verde, tudo comprado fresquinho na volta do trabalho. Ter que rodar umas três vezes em volta do supermercado para arranjar vaga para o carro não é fácil, mas faz parte. Pior seria se voltasse do trabalho de ônibus, é como raciocina o seu lado Polyana. Ah, se a vida fosse assim tão fácil; só que não é.
Tem dias que não dá, e se alguém ousar dizer o quanto sua vida é bacana -e feliz- por ter um marido legal, dois filhos ajustados, uma profissão invejável e ser, portanto, uma mulher realizada, ela é capaz de sair atirando. Porque tem dias em que, verdadeiramente, não dá.
Reconhece que tem sorte: uma família cheia de saúde e sem problemas maiores, isto é, nenhum drogado ou alcoólatra, ninguém que tenha sido preso por atentado ao pudor ou saído nos jornais por ter sido apanhado roubando, essas coisas. Além disso, tem computador, internet, dois carros, seguro-saúde, as crianças estudam em colégio particular e que se saiba -que se saiba- ninguém pretende entrar na política. Está tudo bem, não está? Médio.
Não há coisa mais misteriosa do que o coração de uma mulher. Há uns dias, desde que viu um documentário sobre os amores de Edith Piaf, ela anda estranha. Estranha e tomada por um grande desejo: o de ter um grande amor que vire sua vida pelo avesso. Isso, se tivesse coragem.
Ela não sabe direito o que quer, mas sabe bem o que não quer: continuar vivendo aquela vida perfeita, que de repente ficou medíocre, feliz e medíocre como costuma ser a felicidade.
O que ela quer mesmo é ter um homem que a faça sofrer bastante, que chegue sempre bem tarde e que às vezes nem volte para casa; um homem que não seja sempre tão delicado, que a faça ficar cismada, sem entender por que está com ele, mas no fundo entendendo muito bem; um homem que faça com que ela sinta o que não sente há dez anos com esse marido tão legal; um homem que a faça às vezes muito infeliz, pois só esses sabem fazer as mulheres, às vezes, muito felizes.
Um homem que a faça chorar de sofrimento, de desespero, de agonia, coisa que não acontece há muito tempo.
Porque não é possível viver sem sofrer de vez em quando -por amor, é claro.


E-mail - danuza.leao@uol.com.br


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