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DANUZA LEÃO
Um pouco de dor
Ela conseguiu fazer de sua
vida uma vida legal, como
sempre achou que devia.
Já de manhã o humor é sempre
ótimo, mesmo depois de uma
olhada rápida nas primeiras páginas dos jornais; dar o café para
duas crianças pequenas não é
exatamente o paraíso sobre a terra, mas ela consegue, sorrindo, e
se o marido pergunta sobre as
meias, é capaz de responder alegremente, pois sabe que sem marido pode ser pior ainda. Mas não
vamos exagerar: maridos são capazes de tudo, até de comentar o
assassinato do líder do Hamas.
Mas aí já seria o caso de outro assassinato: o dele.
Como mulher moderna que é,
ela trabalha e põe em prática tudo que lê nas revistas femininas:
maquiagem leve, salto não muito
alto, bom humor, interesse, participação e competência, claro. Para estar sempre em dia com os
avanços da profissão, se atualiza
sempre, por meio da leitura e da
internet. A que horas? Quando o
marido e os filhos já estão na cama, depois de terem comido um
adorável jantar feito por ela
-um peitinho de frango com ervas, legumes no vapor e uma salada verde, tudo comprado fresquinho na volta do trabalho. Ter que
rodar umas três vezes em volta
do supermercado para arranjar
vaga para o carro não é fácil, mas
faz parte. Pior seria se voltasse
do trabalho de ônibus, é como
raciocina o seu lado Polyana. Ah,
se a vida fosse assim tão fácil; só
que não é.
Tem dias que não dá, e se alguém ousar dizer o quanto sua vida é bacana -e feliz- por ter
um marido legal, dois filhos ajustados, uma profissão invejável e
ser, portanto, uma mulher realizada, ela é capaz de sair atirando.
Porque tem dias em que, verdadeiramente, não dá.
Reconhece que tem sorte: uma
família cheia de saúde e sem problemas maiores, isto é, nenhum
drogado ou alcoólatra, ninguém
que tenha sido preso por atentado
ao pudor ou saído nos jornais por
ter sido apanhado roubando, essas coisas. Além disso, tem computador, internet, dois carros, seguro-saúde, as crianças estudam
em colégio particular e que se saiba -que se saiba- ninguém
pretende entrar na política. Está
tudo bem, não está? Médio.
Não há coisa mais misteriosa do
que o coração de uma mulher. Há
uns dias, desde que viu um documentário sobre os amores de
Edith Piaf, ela anda estranha. Estranha e tomada por um grande
desejo: o de ter um grande amor
que vire sua vida pelo avesso. Isso,
se tivesse coragem.
Ela não sabe direito o que quer,
mas sabe bem o que não quer:
continuar vivendo aquela vida
perfeita, que de repente ficou medíocre, feliz e medíocre como costuma ser a felicidade.
O que ela quer mesmo é ter um
homem que a faça sofrer bastante, que chegue sempre bem tarde e
que às vezes nem volte para casa;
um homem que não seja sempre
tão delicado, que a faça ficar cismada, sem entender por que está
com ele, mas no fundo entendendo muito bem; um homem que
faça com que ela sinta o que não
sente há dez anos com esse marido tão legal; um homem que a faça às vezes muito infeliz, pois só
esses sabem fazer as mulheres, às
vezes, muito felizes.
Um homem que a faça chorar
de sofrimento, de desespero, de
agonia, coisa que não acontece há
muito tempo.
Porque não é possível viver sem
sofrer de vez em quando -por
amor, é claro.
E-mail - danuza.leao@uol.com.br
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