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São Paulo, segunda-feira, 28 de abril de 2003

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MOACYR SCLIAR

Até que o Leão nos separe

 Casal deve declarar em separado. Quando marido e mulher trabalham, em geral é vantagem para o casal fazer a declaração separadamente.
Dinheiro Online, 23.abr.2003

Ele era de fazer as coisas certinho, sobretudo quando se tratava de obrigações legais. Assim, lia e recortava todas as notícias que saíam sobre Imposto de Renda, comprava todos os manuais que encontrava em bancas de jornal. Tendo estudado bem a questão, decidiu que ele e a mulher deveriam fazer declaração em separado. Será a primeira coisa que não faremos juntos em 12 anos de casados, disse a ela, brincando. A esposa, mulher bonita e bem mais jovem do que ele, concordou, como sempre. Mas disse que faria a sua própria declaração. O que o deixou surpreso. Acho que você não entende dessas coisas, ponderou. Ela admitiu que, de fato, não era de fazer cálculos e preencher formulários; estava, porém, na hora de aprender. Ainda desconcertado, ele concordou, pedindo, porém, que ela o consultasse em caso de dúvida.
Não falaram mais sobre o assunto. Alguns dias antes do prazo final, ele, sempre intrigado, perguntou sobre a declaração. Já entreguei, disse ela. O que, mais uma vez, foi uma surpresa. Ela contou que a tarefa se revelara mais complexa do que parecia e resolvera, por isso, procurar um contador. Que já enviara a declaração pela internet.
Àquela altura, ele estava francamente desconfiado. Encontrando numa gaveta o cartão do contador, resolveu investigar. Por sorte, tinha uma parente que trabalhava no escritório do homem. Essa parente obteve uma cópia da declaração. E o que viu ali deixou-o estarrecido.
Em primeiro lugar, a mulher ganhava muito mais do que ele imaginava. O que, agora dava-se conta, explicava os belos vestidos, os sapatos de luxo, a despesa nos salões de beleza. Em segundo lugar, ela tinha duas fontes de renda. Uma era a que ele conhecia: a mulher era auxiliar de escritório numa grande multinacional. Mas os ganhos ali eram modestos, sobretudo quando comparados aos resultantes da segunda fonte, uma empresa registrada sob o enigmático nome de Erotex.
Ele agora vive um dilema: deve ou não descobrir o que é essa tal de Erotex? O machismo ofendido diz que sim: o marido tem de saber o que a mulher faz nas horas vagas, ou não tão vagas assim. Por outro lado, é possível que a função dela na tal empresa nada tenha a ver com erotismo; quem sabe se trata de algo puramente administrativo. Além disso, não é pouco o dinheiro que ela ganha.
Claro, a mulher poderia ter sonegado e, com isso, ele, pelo menos, não ficaria sabendo. Mas não é do estilo dela. Como o marido, em termos de obrigações legais, ela faz tudo certinho.


Moacyr Scliar escreve às segundas-feiras, nesta coluna, um texto de ficção baseado em matérias publicadas no jornal.


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