São Paulo, quinta-feira, 28 de abril de 2005

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PASQUALE CIPRO NETO

"A gente vai na adega"

No último domingo, mestre Ferreira Gullar terminou sua coluna com esta observação: "Na crônica passada, escrevi "A gente vai na adega do cara" . A revisão corrigiu: "A gente vai à adega do cara". E, com isso, estragou a graça da frase seguinte". A "frase seguinte" era esta: "Cara, "nadega" é bunda de bêbado".
O grande poeta maranhense se referia a uma conversa ocorrida em uma recepção, "no apartamento de um bacana em Copacabana". A observação sobre "nadega" foi feita por Millôr Fernandes.
O episódio é ótimo para tratarmos de uma questão importante: a adequação da linguagem. Na norma padrão, os verbos que indicam "movimento para" costumam reger a preposição "a". Integram essa lista os verbos "ir" e "chegar", entre outros. No padrão formal, portanto, vai-se a (ou "para") e chega-se a algum lugar.
E na língua oral? Em algumas regiões do Brasil, também se usa a preposição "a" (sobretudo com o verbo "ir"), mas, salvo engano, predomina a preposição "em", o que significa que frases como "Fui na feira" e "Cheguei na escola" são mais comuns do que "Fui à feira" e "Cheguei à escola".
Em seu "Dicionário Prático de Regência Verbal", Celso Luft faz esta observação: "No português brasileiro também ocorre ir em, sobretudo na fala, o que pode ser até sobrevivência da língua-mãe (latim in urbem ire)". Em seguida, Luft dá estes exemplos: "Vou em casa", "Foi no centro (no médico, no cinema etc.)". Depois de outras citações e referências, Luft termina desta forma a observação: "Mesmo assim, em linguagem culta formal, sobretudo escrita, recomenda-se ir a ou para".
Voltemos ao texto de Gullar. O autor da memorabilíssima letra de "O Trenzinho do Caipira" deveria ter escrito "a gente vai à adega", ou seja, deveria ter optado pela norma culta ao transcrever o que ocorreu num diálogo, numa festa, entre amigos? Seria o mesmo que exigir que se vá à praia de terno e gravata. Isso sem contar a essência da questão, que é a piada, destruída pelo uso do verbo "ir" com a regência recomendada pela norma padrão.
Há algum tempo, a Unesp fez uma questão baseada neste trecho da canção "A Burguesia": "A burguesia quer ir a/em Nova York fazer compras". A banca examinadora queria que os candidatos dissessem o que poderia explicar o fato de que, no encarte do disco, está escrito "ir a Nova York", mas, na hora de gravar, Cazuza optou por "ir em Nova York".
A explicação já está dada, não? Na escrita, prevaleceu o código formal; no canto (mais próximo da fala), prevaleceu o informal.
 
A coluna da semana passada (sobre o nome do papa) deu o que falar. Nunca recebi tantas mensagens dos leitores, alguns dos quais ainda inconformados pela opção por "Bento" (e não por "Benedito"). Ontem, o próprio papa afirmou que o nome escolhido por ele tem relação com são Bento (patrono da Europa), que nasceu no fim do século 5º. A esta altura, não vamos começar tudo de novo, vamos? Basta consultar alguns sites ou enciclopédias para que se veja que os 15 papas Bentos anteriores tinham mesmo esse nome, e não Benedito, embora Bento e Benedito sejam, essencialmente, a mesma palavra, como afirmamos dom Geraldo Majella, no último domingo ("Bento significa Benedito, abençoado de Deus"), e eu, na semana passada. É isso.


Pasquale Cipro Neto escreve nesta coluna às quintas-feiras
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