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Ninguém mata na 1ª agressão, diz pediatra
Para médico, se o casal Nardoni matou Isabella, como diz a polícia, a menina já teria sido vítima de agressão em outras ocasiões
Profissionais de educação, de saúde ou vizinhos devem estar atentos a hematomas ou queimaduras no corpo da criança, diz Monteiro Filho
ANTÔNIO GOIS
DA SUCURSAL DO RIO
Para o pediatra Lauro Monteiro Filho, fundador da Abrapia (Associação Brasileira Multiprofissional de Proteção à Infância e à Adolescência) e hoje
editor do Observatório da Infância, a sociedade brasileira
ainda passa pela fase da negação da realidade de que os pais
podem, sim, ser os principais
agressores dos próprios filhos.
Foi a Abrapia que criou o primeiro telefone nacional gratuito de denúncia anônima contra
casos de abuso sexual infantil.
Monteiro Filho reconhece que
há sempre o risco desses telefones serem usados como instrumento de vingança por meio de
denúncias falsas, mas esse é um
ônus necessário para evitar a
morte de crianças pelos pais.
Segundo o pediatra, se a polícia estiver certa e o pai e a madrasta de Isabella Nardoni forem mesmo seus assassinos, eles provavelmente não cometeram o primeiro ato de agressão no dia da morte da menina.
"A não ser em caso de surtos
psicóticos, ninguém mata o filho numa primeira agressão."
Leia trechos de sua entrevista
concedida à Folha em seu consultório, em Copacabana (Rio).
FOLHA - Como foi o processo de
criação do disque-denúncia?
LAURO MONTEIRO FILHO - Começou no Rio de Janeiro, quando,
em 1988, criamos a Abrapia
[que encerrou suas atividades
há dois anos] e montamos uma
estrutura para atender denúncias por telefone de abuso sexual e violência física no Estado. Em pouco tempo, muito por
pressão internacional, surgiu a
necessidade de criar um número nacional no Brasil, já que havia a imagem de que o país não
estava fazendo nada para coibir
a exploração sexual de crianças.
Em 1998, fomos chamados
pelo Ministério da Justiça para
criar um telefone federal. Inicialmente, trabalhou-se apenas
a questão da violência sexual.
Em 2003, com a troca de governo, o ministério nos chamou e
informou que eles iriam assumir o programa. Eles decidiram
ampliar e incluir toda forma de
violência contra a criança e o
adolescente, não apenas sexual.
FOLHA - A denúncia é eficiente para coibir casos de violência infantil?
MONTEIRO FILHO - A denúncia é
fundamental. É preciso convencer a população de que temos, sim, que nos intrometer
na família. Pais não são donos
dos filhos. Aliás, ninguém é "dono" de uma criança, mas eu diria que um pai que bate no filho
é menos dono de alguém que a
protege. O problema que enfrentamos no Brasil é que boa
parte da população acha que
sua denúncia não vai dar em
nada. É preciso ter canais para
denúncia, mas a população precisa enxergar que isso terá uma
conseqüência.
FOLHA - Esses telefones de denúncia, no entanto, são muitas vezes
usados como instrumento de vingança. Não há o risco de muitos pais
serem denunciados injustamente?
MONTEIRO FILHO - Esse é, sem
dúvida, um ônus desses instrumentos. A denúncia infundada
leva a graves prejuízos. Tanto
que em vários países foram
criados associações de vítimas
de denúncias infundadas de
abuso sexual. Fui perito da vara
de família no Rio durante três
anos e lidei muito com pais que
se separavam e continuavam
com o litígio na Justiça. Nesses
casos, o risco de falsa denúncia
é realmente alto.
Mas não podemos deixar de
criar mecanismos para prevenir a violência. Quem denuncia
tem que ter responsabilidade e
pensar nas conseqüências.
FOLHA - Quando vocês administraram o telefone nacional de denúncia
houve casos de pais que cometeram
atrocidades contra os filhos?
MONTEIRO FILHO - Inicialmente,
as denúncias que chegavam
eram de exploração sexual, que
aconteciam na rua ou em estabelecimentos públicos. Nesse
caso, os pais não eram os principais responsáveis.
Num segundo momento, começaram a aparecer casos de
abuso sexual dentro de casa.
Nesses casos, o abusador já era
com freqüência alguém da família: um pai, um padrasto, um
irmão mais velho. Admitir que
os pais podem ser violentos
contra os filhos é uma mudança
de comportamento necessária
para passar a atuar na prevenção. Estamos ainda numa fase
de negação dessa realidade.
Precisamos passar pela fase de
sofrimento e aceitar que os pais
podem ser violentos.
FOLHA - Crianças dificilmente vão
falar com estranhos e denunciar os
próprios pais. Como perceber que
estão sendo vítima de violência?
MONTEIRO FILHO - Há vários sinais que profissionais de educação, de saúde ou vizinhos podem perceber. No caso de professores, é muito comum a
criança maltratada aparecer
com marcas de beliscão no corpo, queimaduras, marcas de
cinto ou hematomas.
A professora deve desconfiar
se a criança está muito quieta,
chorando demais. Ela precisa
então passar essa suspeita para
a direção da escola, para que alguém tome alguma atitude. O
mesmo vale para os profissionais de saúde. Já no caso de vizinhos, é mais difícil perceber
essas marcas físicas no corpo,
mas é preciso também estar
atento. Nesse caso da morte de
Isabella Nardoni, se o pai e a
madrasta forem mesmo os culpados, como acredita a polícia,
a menina provavelmente já gritou "pára, pai" outras vezes.
Também já deve ter chegado
na casa da mãe com sinais de
agressão. Ninguém começa
uma agressão já matando o filho, a não ser em caso de surtos
psicóticos. Nunca vi nenhum
pai ou mãe admitir que maltrataram o filho, mesmo quando
havia todas as evidências de
que eles eram culpados.
FOLHA - Toda essa preocupação
em denunciar a violência contra
crianças não pode levar a um nível
de exagero que iniba os pais de impor limites aos filhos?
MONTEIRO FILHO - Acho que é
consenso que uma das tarefas
dos pais é estabelecer limites.
Eles têm que mostrar aos filhos
que são amados, a criança tem
que ser criada com auto-estima
elevada, mas educar é uma situação conflituosa. A criança
não quer limite, mas tem que
ter. É normal a criança querer
confrontar os pais, mas sou a
favor, por exemplo, de que em
vez da palmada, dê-se o castigo.
FOLHA - O que há de errado com a
palmada?
MONTEIRO FILHO - É um ato de
violência e de covardia. É uma
forma também de transmitirmos a mensagem de que os
conflitos são resolvidos por
meio da violência.
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