São Paulo, segunda-feira, 28 de abril de 2008

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Ninguém mata na 1ª agressão, diz pediatra

Para médico, se o casal Nardoni matou Isabella, como diz a polícia, a menina já teria sido vítima de agressão em outras ocasiões

Profissionais de educação, de saúde ou vizinhos devem estar atentos a hematomas ou queimaduras no corpo da criança, diz Monteiro Filho

ANTÔNIO GOIS
DA SUCURSAL DO RIO

Para o pediatra Lauro Monteiro Filho, fundador da Abrapia (Associação Brasileira Multiprofissional de Proteção à Infância e à Adolescência) e hoje editor do Observatório da Infância, a sociedade brasileira ainda passa pela fase da negação da realidade de que os pais podem, sim, ser os principais agressores dos próprios filhos. Foi a Abrapia que criou o primeiro telefone nacional gratuito de denúncia anônima contra casos de abuso sexual infantil.
Monteiro Filho reconhece que há sempre o risco desses telefones serem usados como instrumento de vingança por meio de denúncias falsas, mas esse é um ônus necessário para evitar a morte de crianças pelos pais.
Segundo o pediatra, se a polícia estiver certa e o pai e a madrasta de Isabella Nardoni forem mesmo seus assassinos, eles provavelmente não cometeram o primeiro ato de agressão no dia da morte da menina. "A não ser em caso de surtos psicóticos, ninguém mata o filho numa primeira agressão."
Leia trechos de sua entrevista concedida à Folha em seu consultório, em Copacabana (Rio).

FOLHA - Como foi o processo de criação do disque-denúncia?
LAURO MONTEIRO FILHO
- Começou no Rio de Janeiro, quando, em 1988, criamos a Abrapia [que encerrou suas atividades há dois anos] e montamos uma estrutura para atender denúncias por telefone de abuso sexual e violência física no Estado. Em pouco tempo, muito por pressão internacional, surgiu a necessidade de criar um número nacional no Brasil, já que havia a imagem de que o país não estava fazendo nada para coibir a exploração sexual de crianças.
Em 1998, fomos chamados pelo Ministério da Justiça para criar um telefone federal. Inicialmente, trabalhou-se apenas a questão da violência sexual. Em 2003, com a troca de governo, o ministério nos chamou e informou que eles iriam assumir o programa. Eles decidiram ampliar e incluir toda forma de violência contra a criança e o adolescente, não apenas sexual.

FOLHA - A denúncia é eficiente para coibir casos de violência infantil?
MONTEIRO FILHO
- A denúncia é fundamental. É preciso convencer a população de que temos, sim, que nos intrometer na família. Pais não são donos dos filhos. Aliás, ninguém é "dono" de uma criança, mas eu diria que um pai que bate no filho é menos dono de alguém que a protege. O problema que enfrentamos no Brasil é que boa parte da população acha que sua denúncia não vai dar em nada. É preciso ter canais para denúncia, mas a população precisa enxergar que isso terá uma conseqüência.

FOLHA - Esses telefones de denúncia, no entanto, são muitas vezes usados como instrumento de vingança. Não há o risco de muitos pais serem denunciados injustamente?
MONTEIRO FILHO
- Esse é, sem dúvida, um ônus desses instrumentos. A denúncia infundada leva a graves prejuízos. Tanto que em vários países foram criados associações de vítimas de denúncias infundadas de abuso sexual. Fui perito da vara de família no Rio durante três anos e lidei muito com pais que se separavam e continuavam com o litígio na Justiça. Nesses casos, o risco de falsa denúncia é realmente alto.
Mas não podemos deixar de criar mecanismos para prevenir a violência. Quem denuncia tem que ter responsabilidade e pensar nas conseqüências.

FOLHA - Quando vocês administraram o telefone nacional de denúncia houve casos de pais que cometeram atrocidades contra os filhos?
MONTEIRO FILHO
- Inicialmente, as denúncias que chegavam eram de exploração sexual, que aconteciam na rua ou em estabelecimentos públicos. Nesse caso, os pais não eram os principais responsáveis. Num segundo momento, começaram a aparecer casos de abuso sexual dentro de casa.
Nesses casos, o abusador já era com freqüência alguém da família: um pai, um padrasto, um irmão mais velho. Admitir que os pais podem ser violentos contra os filhos é uma mudança de comportamento necessária para passar a atuar na prevenção. Estamos ainda numa fase de negação dessa realidade. Precisamos passar pela fase de sofrimento e aceitar que os pais podem ser violentos.

FOLHA - Crianças dificilmente vão falar com estranhos e denunciar os próprios pais. Como perceber que estão sendo vítima de violência?
MONTEIRO FILHO
- Há vários sinais que profissionais de educação, de saúde ou vizinhos podem perceber. No caso de professores, é muito comum a criança maltratada aparecer com marcas de beliscão no corpo, queimaduras, marcas de cinto ou hematomas. A professora deve desconfiar se a criança está muito quieta, chorando demais. Ela precisa então passar essa suspeita para a direção da escola, para que alguém tome alguma atitude. O mesmo vale para os profissionais de saúde. Já no caso de vizinhos, é mais difícil perceber essas marcas físicas no corpo, mas é preciso também estar atento. Nesse caso da morte de Isabella Nardoni, se o pai e a madrasta forem mesmo os culpados, como acredita a polícia, a menina provavelmente já gritou "pára, pai" outras vezes. Também já deve ter chegado na casa da mãe com sinais de agressão. Ninguém começa uma agressão já matando o filho, a não ser em caso de surtos psicóticos. Nunca vi nenhum pai ou mãe admitir que maltrataram o filho, mesmo quando havia todas as evidências de que eles eram culpados.

FOLHA - Toda essa preocupação em denunciar a violência contra crianças não pode levar a um nível de exagero que iniba os pais de impor limites aos filhos?
MONTEIRO FILHO
- Acho que é consenso que uma das tarefas dos pais é estabelecer limites. Eles têm que mostrar aos filhos que são amados, a criança tem que ser criada com auto-estima elevada, mas educar é uma situação conflituosa. A criança não quer limite, mas tem que ter. É normal a criança querer confrontar os pais, mas sou a favor, por exemplo, de que em vez da palmada, dê-se o castigo.

FOLHA - O que há de errado com a palmada?
MONTEIRO FILHO
- É um ato de violência e de covardia. É uma forma também de transmitirmos a mensagem de que os conflitos são resolvidos por meio da violência.


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