São Paulo, terça-feira, 28 de maio de 2002

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MARILENE FELINTO

Treinador pessoal

Um homem dirigindo um carro preto na rua Estados Unidos, num dos Jardins, bairro de classe alta de São Paulo, sábado de manhã. O tráfego seguia lento, irritante.
Um sinal abria também lento na esquina adiante. Os carros eram tartarugas. O homem no carro preto era mais lento do que todos os outros. Como estava bem atrás dele, notei a inscrição gravada na lataria reluzente, logo abaixo do vidro traseiro: "Marcelo (sobrenome), personal trainer", e um endereço eletrônico.
"Treinador pessoal", essa a tradução, para quem não sabe, que identifica a mistura de professores de educação física com massagistas, fisiculturistas, não sei direito, definida por essa profissão novíssima.
O que eu não sabia era que se anunciava o serviço agora na lataria de carros chiques como aquele, imponente, talvez importado. Não prestei atenção na marca, porque estava com ódio -e, portanto, só prestava atenção no ódio.
As letras na lataria do carro eram elegantes, finas, como toda a rua Estados Unidos -meu ódio era de estar presa no congestionamento junto com aquela gente frequentadora de bingos e restaurantes caros naquela rua, em pleno sábado de manhã.
Por ironia do destino, o rádio do carro dava uma notícia triste, sobre uma rua oposta àquela: a avenida Sapopemba, na zona leste, região das mais pobres da cidade. Uma tentativa de assalto a um ônibus provocara um grave acidente na noite anterior. Seis pessoas haviam morrido e pelo menos 25 tinham ficado feridas depois que o motorista, atingido por tiros, perdera o controle do veículo. Entre os mortos, uma universitária de 18 anos, provavelmente voltando da faculdade particular e precária, que devia pagar com sacrifício. Uma tragédia. O acidente acontecera na altura do número 12.790 da avenida, uma das mais longas do mundo, eu acho, gigantesca serpente de miséria e abandono. Sempre me impressionou essa avenida.
Todo o meu ódio foi se transferindo para o "treinador pessoal", que dirigia distraído, como quem passeasse. Buzinei, para ver se ele se deslocava menos manzanza. Nada. Fez questão de ir ainda mais devagar, o treinador pessoal, aquela espécie de michê de luxo, assexuado, asséptico -pensei, talvez com inveja das clientes dele, das mulheres que, na falta de companhia, compram uma, e daí? Das ricas, cujo dinheiro tudo compra.
Para completar a cena urbana e absurda, é quase inverno, tudo meio triste, escurece cedo em São Paulo, lá pelas 17h, e tem feito frio com sol -atmosfera européia, que me lembra Berlim, Amsterdã, qualquer dessas cidades assépticas por onde já andei e sempre me senti deslocada, em que eu nunca coube, senão com o sentimento atávico de uma alforriada, com direito a apenas pouco.
Como caber na rua Estados Unidos? Como se incluir na natureza dessas relações societárias que estabelecem o personal trainer e sua cliente? Nem que eu tivesse dinheiro conseguiria. Comecei a brigar com o treinador pessoal -em silêncio, de início, eu comigo mesma.
Logo que pude, emparelhei meu carro com o do homem, por pura provocação. A janela dele estava aberta. Ele percebeu. Não se virou. Covarde. Talvez com medo de que eu fosse um bandido e lhe desfechasse um tiro à menor provocação. Sua cara de boçal, seu jeito "blasé", o braço para fora, apoiado na janela -essa a violência dele, bizarra. A minha, a provocação, a buzina.
Não sou exatamente o tipo que briga no trânsito. Mas pegar pela frente um "Marcelo, personal trainer", todo seguro da sua fidalguia pós-moderna, é demais para quem já transitou pela desgraçada avenida Sapopemba.

E-mail - mfelinto@uol.com.br



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