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MARILENE FELINTO
Treinador pessoal
Um homem dirigindo um
carro preto na rua Estados
Unidos, num dos Jardins, bairro
de classe alta de São Paulo, sábado de manhã. O tráfego seguia
lento, irritante.
Um sinal abria também lento
na esquina adiante. Os carros
eram tartarugas. O homem no
carro preto era mais lento do que
todos os outros. Como estava bem
atrás dele, notei a inscrição gravada na lataria reluzente, logo
abaixo do vidro traseiro: "Marcelo (sobrenome), personal trainer",
e um endereço eletrônico.
"Treinador pessoal", essa a tradução, para quem não sabe, que
identifica a mistura de professores de educação física com massagistas, fisiculturistas, não sei direito, definida por essa profissão
novíssima.
O que eu não sabia era que se
anunciava o serviço agora na lataria de carros chiques como
aquele, imponente, talvez importado. Não prestei atenção na
marca, porque estava com ódio
-e, portanto, só prestava atenção no ódio.
As letras na lataria do carro
eram elegantes, finas, como toda
a rua Estados Unidos -meu ódio
era de estar presa no congestionamento junto com aquela gente
frequentadora de bingos e restaurantes caros naquela rua, em pleno sábado de manhã.
Por ironia do destino, o rádio
do carro dava uma notícia triste,
sobre uma rua oposta àquela: a
avenida Sapopemba, na zona leste, região das mais pobres da cidade. Uma tentativa de assalto a
um ônibus provocara um grave
acidente na noite anterior. Seis
pessoas haviam morrido e pelo
menos 25 tinham ficado feridas
depois que o motorista, atingido
por tiros, perdera o controle do
veículo. Entre os mortos, uma
universitária de 18 anos, provavelmente voltando da faculdade
particular e precária, que devia
pagar com sacrifício. Uma tragédia. O acidente acontecera na altura do número 12.790 da avenida, uma das mais longas do mundo, eu acho, gigantesca serpente
de miséria e abandono. Sempre
me impressionou essa avenida.
Todo o meu ódio foi se transferindo para o "treinador pessoal",
que dirigia distraído, como quem
passeasse. Buzinei, para ver se ele
se deslocava menos manzanza.
Nada. Fez questão de ir ainda
mais devagar, o treinador pessoal, aquela espécie de michê de
luxo, assexuado, asséptico -pensei, talvez com inveja das clientes
dele, das mulheres que, na falta
de companhia, compram uma, e
daí? Das ricas, cujo dinheiro tudo
compra.
Para completar a cena urbana e
absurda, é quase inverno, tudo
meio triste, escurece cedo em São
Paulo, lá pelas 17h, e tem feito frio
com sol -atmosfera européia,
que me lembra Berlim, Amsterdã,
qualquer dessas cidades assépticas por onde já andei e sempre me
senti deslocada, em que eu nunca
coube, senão com o sentimento
atávico de uma alforriada, com
direito a apenas pouco.
Como caber na rua Estados
Unidos? Como se incluir na natureza dessas relações societárias
que estabelecem o personal trainer e sua cliente? Nem que eu tivesse dinheiro conseguiria. Comecei a brigar com o treinador
pessoal -em silêncio, de início,
eu comigo mesma.
Logo que pude, emparelhei meu
carro com o do homem, por pura
provocação. A janela dele estava
aberta. Ele percebeu. Não se virou. Covarde. Talvez com medo
de que eu fosse um bandido e lhe
desfechasse um tiro à menor provocação. Sua cara de boçal, seu
jeito "blasé", o braço para fora,
apoiado na janela -essa a violência dele, bizarra. A minha, a
provocação, a buzina.
Não sou exatamente o tipo que
briga no trânsito. Mas pegar pela
frente um "Marcelo, personal
trainer", todo seguro da sua fidalguia pós-moderna, é demais para
quem já transitou pela desgraçada avenida Sapopemba.
E-mail - mfelinto@uol.com.br
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