São Paulo, quarta-feira, 28 de julho de 2004

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URBANIDADE

Uma cidade na mesa de um bar

GILBERTO DIMENSTEIN
COLUNISTA DA FOLHA

Não se tem notícia de um objeto de design que houvesse obtido tamanha popularidade em São Paulo a ponto de se transformar em personagem da boemia intelectual paulistana. Como bom personagem, a peça virou, neste ano, tema de um livro escrito por pessoas que privaram de sua intimidade.
Chico Millan e Maria Cecília Gregori (Ticha), proprietários do bar que leva o nome da peça, quando fizeram a encomenda do inusitado balcão aos arquitetos Paulo Fecarotta (Fino) e Nando Millan, não suspeitavam que fossem acabar se rendendo aos caprichos do móvel.
A idéia era fazer que o balcão de 54 metros de comprimento formado de pranchas ovais serpenteasse todo o salão do bar como se fosse uma extensão da rua. "Subverteram a ordem", constata Chico. Os clientes passaram, com o tempo, a sentar-se dos dois lados do móvel e se criou um clima sensualmente tribal, todos em roda. Quem fosse ali sozinho logo se sentiria em grupo. É claro que o nome do lugar só podia ser Balcão -assim como o título do livro recém-lançado em comemoração dos dez anos daquele design.
O livro não conta, mas aquele balcão, testemunha na madrugada de tantos casamentos decadentes e de paixões ascendentes, quase não nasceu. Estava chegando o final do ano e o marceneiro Zeca Cury, que morava em Ubatuba, preparava-se para viajar, ritual que lhe era sagrado. Foi quando recebeu, por fax, o estranho desenho do móvel. Em sua marcenaria, nem havia espaço para executar a obra. "O jeito foi usar um campo de futebol", lembra-se Zeca. Por coincidência, estava havia anos armazenado em seu galpão um lote de pranchas de angelim-pedra.
Quando esse projeto saiu do papel, há dez anos, São Paulo assistia a níveis de violência desconhecidos até então. Era o início da epidemia do crack e dos seqüestros. Um bar no qual todos se sentassem juntos, de portas escancaradas, transformou-se involuntariamente numa espécie de ato de resistência numa cidade cada vez mais murada, com seus seguranças privados, condomínios fechados e automóveis blindados.
Uma São Paulo cada vez mais repartida e violenta fez de uma despretensiosa mesa o projeto não de um bar, mas de uma cidade em busca de um balcão para reuni-la.

E-mail - gdimen@uol.com.br


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