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PLAYGROUND DA MALDADE
Em jogo, vence quem colecionar o maior nš de barbaridades, como roubar carros e atropelar pedestres
Games cruéis contrariam onda antibaixaria
DÉBORA YURI
DA REVISTA
"Fica pisando na velha!", pede
alguém.
Revólver na mão, o homem robusto pula em cima da vítima. O
sangue enche a calçada.
"Dá uma paulada na cabeça do
carinha!", solta outro.
O homem larga a mulher e a arma, pega um taco de beisebol e
mira a cabeça do policial. Tum!
"Agora passa com o carro de ré
por cima dele!".
Para satisfazer o público, ele arranca um motorista de dentro de
seu veículo, joga o sujeito no chão
e engata a ré, destroçando seu
corpo.
Olhos colados no Playstation 2,
entre gritos e gargalhadas, Márcio, 8, Vitório, 8, e Fabrício, 9, jogam uma das versões de GTA
-Grand Theft Auto, na tradução
algo como "O grande roubo de
carros".
Em casa ou reunidos em LAN
houses, como é o caso desta, sem
uma única máquina vazia às oito
da noite de uma quinta-feira,
crianças e adolescentes cultuam a
febre por games politicamente incorretos.
Foi-se o tempo dos jogos tradicionais, em que os garotos brigavam para decidir quem seria o
mocinho -e, portanto, o vitorioso: nesses, vence quem colecionar
o maior número de barbaridades
como roubar carros, atropelar pedestres, matar inocentes com bazuca, fazer programas com prostitutas e depois executá-las, praticar tortura, corrução policial e
consumo de drogas.
Um dos campeões de audiência
é justamente o GTA, cujas novas
versões os gamemaníacos costumam aguardar como se fosse o
próximo "Harry Potter". "É o segundo jogo mais procurado aqui,
só perde para o futebol, porque
estamos no Brasil. O pessoal gosta
mesmo é de fazer essas atrocidades que o game permite", diz Fernando, 28, dono de uma LAN
house no Sacomã, na zona sul de
São Paulo.
Não por falta de opção, diga-se.
"Na maioria dos jogos, você tem
livre arbítrio, pode decidir entre
ser mocinho ou bandido. No
GTA, por exemplo, dá para escolher personagens bons, ser taxista,
garçom, manobrista. Mas ninguém quer ser esses porque, dizem, não tem a menor graça",
conta Fernando.
Campeã de vendas entre videogames nos EUA no ano passado, a
série foi banida na Austrália. Lançada logo depois, uma versão
"com cortes" excluiu a possibilidade, por exemplo, de o jogador
pegar prostitutas na rua e fazer sexo com elas. Mas sites e blogs destinados aos fãs ensinam mecanismos para "destravar" essas cenas
de sexo.
A polêmica -sem falar no fascínio- em torno do jogo aumentou depois que garotos americanos presos por roubo de carro
afirmaram ter se inspirado no game. No site de relacionamentos
Orkut, há comunidades como
"Viciados em GTA" e "GTA: Só
jogo pela maldade", com tópicos
do tipo "Que maldade vocês
acham mais legal fazer?". Algumas respostas postadas:
"O melhor do jogo é pegar um
carro e sair por aí sem ver se é
contramão ou calçada (...) aí é só
procurar uma velhinha e colocar
o carro em cima dela ou pular o
polícia!"; "Subir nos capôs dos
carros e explodir os miolos do
motorista! Eu particularmente
curto sair por aí matando gente
com a chave de fenda"; "Mano,
vou te contar que aquela faquinha
é um tesão de degolar a galera"...
Terra de ninguém
No Brasil, não existe lei que
proíba menores de idade de jogar
qualquer game, embora o Departamento de Classificação, Títulos
e Qualificação do Ministério da
Justiça faça um relatório de orientação sobre a classificação indicativa de jogos eletrônicos. A lista de
avaliação dos games está disponível no site
www.mj.gov.br/classificacao.
"Counter Strike", "O Justiceiro" e
a série "GTA" foram classificados
como inadequados para menores
de 18 anos.
"Não existe legislação porque
não se supunha que chegaríamos
a isso, é uma realidade nova. As
crianças estão se divertindo de
maneira bem assustadora", diz o
advogado criminalista Maurício
Zanoide de Moraes, professor de
processo penal da Faculdade de
Direito da USP e presidente do
Instituto Brasileiro de Ciências
Criminais.
O problema é que não há meios
de efetivar o cumprimento da
norma, explica Fábio Romeu
Canton Filho, conselheiro efetivo
da OAB (Ordem dos Advogados
do Brasil). "Nas grandes lojas e algumas LAN houses dá para impor a restrição, mas é impossível
fiscalizar relações de internet e o
mercado informal. É só o adolescente entrar em um site de vendas, imprimir o boleto e pagar no
banco. Fora que, nas bancas de
camelô, qualquer pessoa compra
games piratas por R$ 10", complementa Canton.
Aqui, vale dizer que a tecnologia
colaborou muito com a disseminação do acesso infanto-juvenil
ao que é impróprio. O Playstation
2, videogame em plataforma de
CD, é mais fácil de copiar do que
um antigo cartucho, o que facilita
a pirataria. Jogos originais de PS2
são caros (podem custar até R$
250) e a maioria dos jogadores se
diverte em casa com CDs piratas.
LAN houses ilegais fazem o mesmo. Os jogos para PC, além de
disponíveis nos camelôs, podem
ser baixados na web.
"A princípio, vejo como única
solução o critério dos pais. É como proibir o filho de ver certos
programas na TV a cabo. O problema é que, hoje em dia, as crianças passam boa parte do tempo
sozinhas em casa", diz Canton.
A influência do entretenimento
politicamente incorreto na formação dos jovens é uma daquelas
polêmicas sem fim e sem solução
à vista. Além dos enormes interesses econômicos envolvidos, a
discussão esbarra nos campos da
sociologia, psicologia e, uma
questão cara aos valores democráticos, a dobradinha censura
versus liberdade de expressão.
Mais lenha
Na semana passada, a Associação Americana de Psicologia jogou mais lenha na fogueira, ao divulgar relatório afirmando que
games do gênero podem, sim,
deixar crianças e adolescentes
mais violentos. A conclusão veio
após análise de estudos realizados
nos últimos 20 anos. Um deles
mostrou que dez minutos de jogo
violento bastam para o jogador
demonstrar em teste psicológico,
logo em seguida, um comportamento agressivo. Outra pesquisa
levantou que quem pratica um
ato violento em games fica impune em 73% dos casos.
"Games politicamente incorretos fazem mal, porque qualquer
exposição excessiva de modelos
faz com que eles sejam introjetados na constituição do jovem. Esses brinquedos ensinam o individualismo, a lei do mais forte, que
as regras de convivência não valem nada. É uma tragédia social",
afirma a psicanalista infantil Vera
Zimmermann, professora do departamento de psiquiatria da
Unifesp.
Jogos que estimulam a inteligência e a habilidade são saudáveis, ela ressalta. "A competição
tem que ser desenvolvida na
criança, mas dentro de um contexto de regras. É isso que nos
possibilita viver em grupo. Agora,
usar inteligência e habilidade para
atropelar idosos e roubar carros é
um desvio, selvageria."
Mas nem todo mundo vê um
game violento como metáfora do
apocalipse. No livro "Brincando
de Matar Monstros - Por que as
Crianças Precisam de Fantasia,
Videogames e Violência de Faz-de-conta" (editora Conrad), o jornalista e crítico cultural norte-americano Gerard Jones entra como defensor.
"Os games são, de todas as formas de violência no entretenimento, a menos perigosa. O fato
de nos fazerem pensar em tiroteios verdadeiros e treinamento
militar não significa que as crianças os tratem como tal, quando
jogam -seria o mesmo que dizer
que consideram soldadinhos de
plástico ou peças de xadrez guerreiros de verdade", escreveu.
Jones cita o caso Columbine, em
que dois adolescentes americanos
atiraram contra vários colegas de
escola. Ambos eram fãs desses games, e muita gente colocou a culpa nos jogos. "Houve 16 tiroteios
em escolas, protagonizados por
18 adolescentes, nos últimos anos.
Apenas em Columbine os responsáveis eram jogadores exagerados
de videogames. Outros elementos
eram mais comuns: os garotos
costumavam ser ameaçados pelos
colegas, eram hostis ou isolados
dos pais, tinham feito ameaças de
suicídio e mostravam fascinação
por notícias a respeito de tiroteios
anteriores".
Educadores brasileiros ouvidos
pela reportagem não foram tão
condescendentes. "O problema
maior que vejo é o desrespeito pelo ser humano. Mas não adianta
proibir de jogar, porque aí o desejo fica maior. Os pais devem trabalhar essas questões com os filhos, a conversa é o melhor caminho", recomenda Maria Angela
Barbato Carneiro, professora da
Faculdade de Educação da PUC-SP. Maria Angela não enxerga saldo positivo nesse tipo de game.
"Não acho ideal você fazer o inadequado num videogame para fazer o adequado na realidade. Trabalhar a violência com violência é
arriscado."
O psicólogo Miguel Perosa, professor de psicologia da adolescência da PUC-SP, vê com ressalvas
essa relação virtual-real. "Pode ser
que os games possibilitem o extravasamento de raiva e violência,
mas não acredito em mera diversão. Há necessidade de identificação com o propósito do personagem do game", afirma.
Para o psiquiatra infantil Francisco Assumpção, professor do
Instituto de Psicologia da USP, a
princípio, o videogame é uma distração como outra qualquer. "Tudo depende de como se usa. O
problema não é o videogame, e
sim o uso que se faz dele. Os pais
precisam conversar e ficar junto
do filho. Se ele não joga videogame, não estará participando da
cultura da idade dele e será um
coitado, como aquele que não pode ver TV, comer hot-dog ou tomar Coca-Cola."
Acontece que muitos pais e
mães não têm noção do que se
passa no mundo dos games. "Eles
muitas vezes nem sabem do que
se trata o jogo, enquanto as crianças ficam batendo em velhinhas
com naturalidade. Por isso, é bom
pesquisar antes de dar um game
ao filho", diz a psicanalista Vera
Zimmermann.
Outros até sabem, mas não
vêem nada de ruim: "Não tenho
nada contra isso. Achei até bom
para o desenvolvimento das
crianças, porque o inglês deles
melhorou. Tem todo um processo para conseguir entrar no jogo
e, se não entender inglês, você não
entra", diz a auxiliar administrativa Verônica, 35, mãe de Márcio e
Vitório.
Os meninos que jogam também
não acham. "Não é porque matei
uma mulher no videogame que
eu vou ali na esquina fazer o mesmo. É uma coisa do jogo fazer
maldades", afirma João Lucas, 11,
que vai para frente do Playstation
2 assim que chega do colégio.
"Meus pais deixam eu jogar tudo
que eu quiser. O GTA eu ganhei
do meu pai de aniversário, no ano
passado. Eu tinha pedido um game de futebol, mas ele disse que
não achou e veio com esse".
Já que não dá para fazer gol...
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