São Paulo, domingo, 28 de agosto de 2005

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Uma prima-dona na periferia

Atriz comenta as apresentações de monólogo que faz a alunos de 21 CEU´s, na periferia de São Paulo, que diz estar descobrindo

LAURA CAPRIGLIONE
DA REPORTAGEM LOCAL

A atriz Regina Duarte está em cartaz nos 21 CEUs, espalhados pelas quebradas da cidade, com o monólogo "Coração Bazar". Tem aproveitado para, no trajeto entre sua casa, no Jardim Paulista, e os escolões construídos pela ex-prefeita Marta Suplicy, descobrir a periferia de São Paulo. "Como tem oficina mecânica! É muita oficina mecânica; eles têm muito carro para consertar", espanta-se.
A ex-Viúva Porcina (personagem da novela "Roque Santeiro") é um sucesso nos becos e vielas. Na última quarta-feira, em Perus, zona norte da cidade, mil pessoas divididas em duas sessões (casa lotada) assistiram à apresentação da atriz. Ao final, aplausos, o público todo em pé, e diversos pedidos de autógrafos.
"Ela não é maravilhosa?", derretia-se o o estudante Carlos Ambrósio, 23, que cursa a 6ª série do ensino fundamental e é guitarrista de uma banda heavy metal: "Um som furioso", explica.

"Te furo agora"
"O pessoal da periferia é muito gentil", retribui Regina, que, entretanto, já teve de se haver com "manos" mais irados, como aconteceu em um CEU em que um estudante que não parava de falar e rir durante a apresentação. "Era uma coisa agressiva."
Um funcionário da produção se dirigiu ao garoto, colocou a mão no ombro dele e pediu: "Por favor, evite falar, porque está atrapalhando". Ao que o bagunceiro retrucou: "Se você não tirar a mão do meu ombro, te furo agora". "Ficou bem concreta essa coisa da violência, mas ficou só nisso", afirma a estrela.
Regina Duarte diz sentir uma grande familiaridade com a periferia, por ter morado nos arredores de Campinas, interior de São Paulo, durante a infância e a adolescência. Foi bem antes do tempo dos grupos de extermínio e das chacinas, mas ela acha que muitas coisas boas permaneceram.
"Em geral, eu chego aos bairros às quatro, cinco da tarde. Sempre reparo naquelas rodinhas, muita gente de papo na rua, sentada em cadeiras na calçada, coisa que eu não via há muito. Nossa, como eles são felizes. Eu acho que eles são felizes e não sabem, porque a sensação que me passa é que eles são donos do seu tempo e eu não sou mais dona do meu."
Mas esse tempo ocioso não será por causa do desemprego, Regina? A prima-dona ri. "É, pode ser por causa do desemprego mesmo, mas eu acho que eles são muito felizes mesmo assim."

Escuridão
Chegar ao CEU Perus impõe uma viagem de 30 km, desde o centro de São Paulo. Pega-se a marginal Tietê, a rodovia dos Bandeirantes, o Rodoanel, passa-se ao largo do parque estadual do Jaraguá, uma área de floresta preservada no norte da cidade, e vira-se na avenida que, afinal, entra no bairro. É quase meia-noite, e, quando a atriz volta para a cidade central, vê-se: há quilômetros inteiros sem iluminação, lâmpadas e fios dos postes roubados.
A atriz percorre essas distâncias a bordo de um carrinho Corsa, cedido pela Prefeitura de São Paulo e pilotado por um motorista "que conhece todos os caminhos". Vai sem segurança. Não dá medo? Ela garante que não.
Quando chega ao teatro do CEU -"tão bem equipado quanto as melhores casas de espetáculos", elogia-, um coquetel espera a ex-namoradinha do Brasil. Refrigerantes, queijinhos e presunto em bandejas são servidos, enquanto estouram os flashes das câmeras dos fãs. Regina recebe presentes: é flor, é bolo, é bibelô, são coisinhas feitas em casa, um crochê.
Orgulhosa, a gestora da escola, Aparecida Vilela de Andrade, 46, também está na recepção à atriz. Logo, subirá ao palco, agradecerá ao prefeito José Serra o espetáculo e -por que não?- pedirá aos alunos que se comportem durante a apresentação.

De-va-gar
Regina não fez nenhuma adaptação no texto, que já foi encenado em teatrões do Rio e de São Paulo, para a nova clientela. Teve o cuidado, porém, de pronunciar as palavras com mais vagar -o espetáculo, por isso, dura entre cinco e dez minutos a mais.
O mesmo recurso ela usou ao se apresentar em Lisboa, por causa da diferença vernacular. Na periferia, recorreu ao expediente por achar que um tempo maior ampliaria as chances de o texto, uma colagem de 13 autores, ser compreendido.
Para uma platéia desacostumada à etiqueta do teatro, Regina criou estratagemas. "O espetáculo de ontem [no CEU Pêra-Marmelo, bairro do Jaraguá] começou que foi uma zona. Eu fui falando cada vez mais baixo e mais pausadamente, e a platéia foi ficando cada vez mais quieta. Ficou um silêncio lindíssimo, absoluto. Dava para cortar como um queijo."
Na próxima semana, Regina interromperá as apresentações nos CEUs para uma temporada popular no Teatro Sérgio Cardoso, bem longe da periferia. Em outubro, volta a "viajar" para as pontas de São Paulo.
Repetindo a performance de público obtida até agora (sempre com casa cheia), considerando que os teatros dos CEUs comportam 450 pessoas sentadas e que são feitas duas apresentações por escola, estima-se que, ao final da temporada escolar, Regina terá levado pelo menos 19 mil alunos e familiares a seu espetáculo. Para a maioria, terá sido a primeira vez em um teatro.
Ah! A Regina Duarte que pronunciou, durante o horário eleitoral gratuito da campanha presidencial de 2002, o famoso texto: "Tô com medo. Faz tempo que não tinha esse sentimento. Nós temos dois candidatos. Um eu conheço, é o Serra... O outro eu não reconheço, tudo o que dizia mudou. Isso dá medo", recusa-se a comentar a atual crise política. Nas apresentações, ninguém lhe perguntou sobre o assunto.


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