São Paulo, segunda-feira, 28 de agosto de 2006

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MOACYR SCLIAR

A máfia dos adesivos


O bando tinha inclusive uma indústria gráfica onde eram confeccionados. Eram depois vendidos por altos preços  


Adesivo de bicheiro dá "imunidade" no Rio. O adesivo de um haras de propriedade de um bicheiro colado no vidro traseiro do carro é usado por moradores da zona norte do Rio como salvo-conduto para evitar blitze da polícia e assaltos a automóveis. O Haras Escafura, de cavalos de corrida, pertence ao bicheiro José Caruzzo Escafura, o Piruinha, 78. Seu Zé, como é respeitosamente chamado pelos moradores, é "dono" da contravenção em mais de dez bairros da zona norte do Rio e já chegou a ser preso no início da década de 1990, com a cúpula do jogo -hoje, está solto. "O adesivo me salvou. Iam roubar meu carro, mas viram o plástico e perguntaram: "Você trabalha na banca (de jogo do bicho)? Então pode ir!" Não trabalho, mas disse que sim", contou um comerciante da região, que abriga máquinas de caça-níqueis da família e pediu para não ter o nome publicado. Um advogado disse à reportagem ter vivido situação semelhante. Foi liberado de um roubo a mão armada depois de um criminoso ter visto o plástico redondo, em preto e branco, com a imagem da cabeça de um cavalo. "Deixa ir embora, tá com o plástico, tá com o plástico!", gritou um deles. A dica para Valéria Souza usar o símbolo veio da própria polícia, diz ela. Um PM parou seu carro, que estava com documentos e IPVA atrasados. "Pede o adesivo do haras do Seu Zé que ninguém mais vai incomodar em blitz. Com o plástico você passa direto."Cotidiano, 21 de agosto

NO COMEÇO , as coisas funcionaram muito bem. O adesivo realmente impunha respeito aos assaltantes; funcionava como uma verdadeira proteção. Melhor do que qualquer blindagem, garantiam os entusiasmados usuários, melhor do que qualquer guarda-costas. Mas então, como sempre sucedem nestas circunstâncias, começaram os abusos.
Quem primeiro detectou a anormalidade foi um veterano assaltante de carros. Como os outros, ele respeitava o adesivo. Só que os seus rendimentos diminuíram bruscamente porque tinha aumentado o número de veículos com o adesivo protetor. O assaltante reportou a ocorrência aos chefões do crime organizado, que decidiram promover uma investigação a respeito. Carros eram detidos e seus adesivos cuidadosamente fotografados, e depois analisados.
Os resultados foram estarrecedores. Dos adesivos, só uma pequena parte -12%, para ser mais exato- era autêntica. O resto não passava de falsificação, às vezes grosseira. Num dos casos, por exemplo, a raça do cavalo havia sido trocada, de baio para alazão. Noutro caso, o animal havia sido tão mal desenhado que parecia vesgo.
As investigações prosseguiram e revelaram a existência de uma verdadeira máfia dos adesivos. O bando tinha inclusive uma indústria gráfica onde os adesivos eram confeccionados. Eram depois vendidos por altos preços, a pessoas que não mereciam nenhuma confiança.
O caso foi interpretado como mais uma manifestação da deterioração moral que tem sido a constante no país. Reunido, o pessoal do crime organizado decidiu tomar providências imediatas. A máfia dos adesivos foi impiedosamente caçada e exterminada. A indústria gráfica foi destruída.
O adesivo continua sendo usado, mas apenas por pessoas de confiança. Mas mesmo estas podem ser detidas nas barreiras de segurança e intimadas a dizer a senha: o nome do cavalo. Que é rebatizado semanalmente. Com gente que não respeita regras, todo cuidado é pouco.


MOACYR SCLIAR escreve, às segundas-feiras, um texto de ficção baseado em notícias publicadas na Folha


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