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São Paulo, domingo, 28 de setembro de 2003

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SP 450

O texto abaixo inaugura a seção "Caminhos da Memória", em que personalidades selecionadas apresentam todos os domingos sua visão de São Paulo, numa série que será publicada até o aniversário da cidade, em 25 de janeiro

Notas de uma música da grande cidade

Rua Batatais, 558, quase esquina com Pamplona. É o edifício Saint Paul, o flat dos Jardins onde aterrissei quando cheguei a São Paulo em 1986 e do qual, até agora, nunca saí (salvo dois anos na alameda Itu, explicados mais adiante).
Vinha da França, e talvez a tradução de São Paulo para Saint Paul tornasse a transição mais suave. Aliás, olha só o destino, meu primeiro consultório em Paris, em 1974, era na rua Saint Paul, número 32.
O edifício Saint Paul é um concentrado da vida urbana. Mais da metade dos apartamentos são ocupados por condôminos, o que permite aquela fala que não significa nada ("esfriou de novo, quando chega o verão?, um bom dia para o senhor"), mas que é essencial para entreter a ilusão de que não estamos sozinhos.
O resto dos apartamentos é um caleidoscópio da cidade. Alguns vizinhos dos últimos meses: Sarali e Daisy (as gêmeas da capa da "Playboy" de fevereiro), Roberto Carlos (o jogador de futebol, não o cantor), Márcio Santos (zagueiro de 94), uma quadrilha de clonadores de cartões de crédito (isso a gente soube quando foram presos), agentes do Departamento de Narcóticos (que se hospedaram para encomendar droga e planejar armadilhas), um sequestrador chileno confirmado e outro que parece que não é, a dona Lia, leitora de tarôs e búzios, que transformou sua sala num terreiro e deixava a porta escancarada bem ao lado da minha etc. Para mais detalhes, pergunte para o senhor Vilmondes, gerente do condomínio, que vive desde sempre numa nuvem de fumaça, jurando que está parando de fumar.

O espaço onde a rua é amiga
Esquina de Batatais com Pamplona. É, para mim, o vilarejo, aquele espaço da cidade, perto de casa, onde a rua é amiga. Há, embaixo do Saint Paul, o restaurante Tatini, onde Mário e Fabrizio Tatini têm a receita de meu prato anticolesterol preferido: peito de frango com fungo e alcachofras puxados no azeite. Há a banca de jornais da esquina: o dono, Rodrigo, é um leitor voraz, cursa jornalismo à noite e quer tornar-se escritor. Um dia, ele estava preocupado com a quantidade de correções e versões sucessivas pelas quais sentia a necessidade de passar seus textos; mostrei-lhe o manuscrito atormentado de uma de minhas colunas. Nos consolamos mutuamente.
Ao lado da banca, há o Café Conosco. Ponto alto: sanduíche quente de peito de peru, tomate seco, rúcula e pesto; chama-se verão na ciabata. Leonel, no caixa, é descendente de italianos; temos conversas de patrícios, com lamúrias sobre o destino do Palmeiras.
Junto com a loja Pour un Homme, Alan, que corta meu cabelo, e os motoristas do ponto de táxi são as figuras que injetam no dia-a-dia o conforto da familiaridade.

O vínculo Milão/São Paulo
Alameda Itu, 174, esquina com Pamplona, edifício Rosália. O prédio, que, sobretudo hoje, tem pouca graça, é um estranho vínculo de minha origem milanesa com São Paulo. Um dia de 1989 ou 90, meu pai ligou de Milão e me disse ter recebido um telefonema de um tal Orlando de São Paulo: algo a ver com um prédio e com Adriana Querci Guetta, uma querida amiga de família (cujo marido, então morto, fora, para mim, uma espécie de mentor na adolescência). Adriana perdera-se na demência, e meu pai era seu tutor e futuro executor testamentário. Do telefonema de Orlando, meu pai não entendeu nada, mas pensava ter conseguido transmitir, numa mistura de espanhol e italiano, meu número. De fato, Orlando me ligou.
Descobri assim que o prédio em questão pertencia a Adriana (herança de seus pais que moraram em São Paulo antes da guerra). Há anos, Orlando, porteiro e "factótum", não recebia notícias da dona que ele servira durante mais de três décadas. Agora, ele estava para ser posto para a rua por uma administradora que declarava ter instruções diretas de Adriana.
Gostei de Orlando e, para melhor tomar conta da situação, aluguei um apartamento no prédio. Em nome do meu pai e de Adriana, autorizei Orlando a transformar a garagem do edifício em quitanda. Durante dois anos, acordei na alta madrugada ao som do inverossímil motor de arranque da F-1000 de Orlando que saía para o Ceasa.
Quando Adriana morreu, encontrei seu testamento brasileiro, que deixava o prédio a instituições caritativas. A caridade consistiu no seguinte: as famílias que moravam no edifício e os comércios da esquina foram despejados, para facilitar a venda. Orlando encheu sua camionete e foi-se para perto de Belo Horizonte.
Daquela época, sobram na garagem frases que Orlando pintara: "O que é bom não é caro", "Não aperte as frutas", "Seja bem-vindo" e "Fiado só dá complicações" (Orlando vendia fiado e não se lembrava dos devedores).
O prédio está, há anos, fechado, às traças. Depois a gente estranha a chegada de sem-teto...

O centro simbólo da cidade
Avenida Paulista, na altura do Masp. É, para mim, o centro simbólico de São Paulo e talvez do Brasil. De um lado, o edifício do Masp afirma a ousadia do sonho moderno e americano de construir um mundo novo. Embaixo dos pilares do Masp, domingo de manhã, a feira lembra que, apesar do sonho de modernidade, não conseguimos nos desfazer das mil coisas que nossos antepassados trouxeram (ou nós mesmos trouxemos). Na frente do Masp está o parque Trianon, para lembrar a exuberância da vegetação tropical e (de noite) a dos corpos. Entre os dois, de costas para a dupla luxúria do Trianon, uma pitada de espírito bandeirante completa o prato: a estátua do Anhanguera. Na base da estátua, o moto: "Acharei o que procuro ou morrerei na empresa". Como tenho o péssimo costume de falar sozinho, cada vez que passo na sua frente, resmungo: "Pois é, morreremos na empresa...".

Entre livros e papéis
Conjunto Nacional, esquina com a Augusta. Oscilo entre a livraria Cultura e as papelarias Nacional ou Viacor, dividido entre o gosto pelos livros e a paixão por todo tipo de instrumento para escrever. Livrarias e papelarias deveriam estar juntas, pois qual é a graça de ler sem o sonho de escrever?

Galerias e falsificações
Descendo a rua Augusta, na calçada oeste, duas galerias.
Primeiro, o Promocenter. São lojinhas abarrotadas, que vendem imitações de bugiganga de marca. Como detesto o uso de logotipos como sinal de status, a falsificação me parece uma grande estratégia subversiva. Fica com você pagar US$ 400 ou R$ 25 por bolsas que ninguém distingue direito. A malandragem transforma o privilégio em babaquice.
Um pouco mais embaixo, há uma pequena galeria a céu aberto, a Galeria Augusta. Salvo no horário de almoço, a galeria é o contrário do Promocenter: despojada e tranquila. Nela, durante anos, havia uma loja sem letreiro e com uma vitrina vazia: não dava para entender o que estava à venda. Nunca ousei entrar e perguntar para a moça, que estava sentada atrás de uma mesinha, o que eles ofereciam. Era, para mim, "a loja que não vende nada", uma declaração surrealista contra o consumo. Pois bem, a loja que não vende nada fechou. E nunca saberei o que (não) vendia.

Aromas, botecos, quitinetes
Rua Paim, 211/235. São dois imensos prédios, que já foram considerados uma espécie de favela vertical e hoje são uma cidade de pequena ou pequeníssima classe média urbana.
Anos atrás, durante um breve tempo, aluguei um apartamento no 211. Nunca cheguei a mobiliá-lo. Só ia para lá à noite; ficava no escuro, contemplava a vista (imperdível) de toda São Paulo ao norte da Paulista, escutava os gritos, as falas e mesmo os sussurros dos adultos e das crianças que lotam as quitinetes, cheirava uma inimitável mistura de (excelente) caldo de feijão com mofo e produtos de limpeza baratos. Era meu jeito de integrar a cidade um pouco além de Jardins, Higienópolis, Pacaembu etc. E de lembrar-me de que vidas aparentemente distantes da minha produzem os mesmos barulhos e exalam um perfume apenas diferente.
Ainda volto, de vez em quando, ao Café Adriata's, embaixo do 235, para bater um papo, ou à Cervejaria Viagem (entre os dois prédios) para jogar snooker.

Um túnel liga emoções
Da rua Paim, a volta para a zona sul passa pelo túnel da 9 de Julho. Três vezes atravessei o túnel a pé, sempre com a sensação injustificada de praticar um esporte de alto risco, talvez pelos olhares perplexos dos que passavam de carro e se perguntavam o que diabo este cara estava fazendo aí. O cheiro de gasolina, o ulular dos motores no espaço fechado e a sensação de desamparo apesar da proximidade (os carros passam muito perto, mas não têm como parar) compõem uma espécie de poema urbano concreto, olfativo, afetivo e sonoro.
Para ouvir a música da grande cidade que é São Paulo, é preciso misturar esse "poema" com as vozes familiares do vilarejo da esquina de casa e com os gritos e os sussurros atrás das paredes da rua Paim.

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