São Paulo, segunda-feira, 28 de outubro de 2002

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MOACYR SCLIAR

O marcador

 Ladrões roubam marcador de livro que pertenceu a Adolf Hitler.
Folha Online, 21.out.2002

Não estava muito claro porque o marcador deveria ficar com ele. Afinal, do grupo que empreendera o bem-sucedido roubo, ele era o menos importante, uma figura secundária: coubera-lhe apenas ficar no carro, aguardando os dois companheiros. Que, em poucos minutos, estavam de volta com o marcador de livros valendo, segundo estimativas deles próprios, uns 15 mil dólares. Você vai ficar com essa coisa, disseram-lhe, até que a gente arranje um comprador. Ele não gostou muito da idéia, mas também não tinha como recusar. Pegou o marcador e seguiu para a casa da namorada.
Ela não tinha chegado ainda. Ele ficou na pequena sala, procurando um lugar para esconder o objeto. Sob o tapete? Não lhe parecia adequado. Dentro de um vaso? A faxineira poderia encontrá-lo. E aí viu a prateleira de livros e seu rosto se iluminou: claro! Que melhor lugar para esconder um marcador de livros do que um livro?
A namorada chegou pouco depois. Ele disse que tinha uma coisa a contar, mas ela, ríspida, respondeu que não queria saber:
-Com essas companhias que você escolheu, não pode ser nada de bom.
E sem dar boa-noite recolheu-se ao quarto: já passava das 11 horas. Ele suspirou, tirou a roupa e meteu-se na cama também.
De repente ouviu um barulho estranho. Vinha da sala. Levantou-se, foi até lá e, na semi-obscuridade, viu algo que o deixou de cabelos em pé.
Os livros mexiam-se na prateleira. Melhor dizendo, o livro: aquele em que tinha colocado o marcador que pertencera a Hitler. Esse livro estava empurrando os outros para fora da prateleira. Um a um eles caíam. E, como que impulsionados por uma força misteriosa, deslizavam pelo chão, em direção à lareira, que estava acesa. E então caíam ou jogavam-se nas chamas. Que já tinham devorado vários volumes. Num impulso, ele apanhou o livro. Que lembrasse, seria apenas um romance. Mas não era uma narrativa ficcional que estava escrita ali. Eram frases em letras garrafais. "O supremo propósito do Estado é preservar a pureza racial", dizia uma delas. "Com a ajuda do credo marxista, os judeus pretendem triunfar sobre os povos", proclamava outra. Voltou para a página de rosto. Minha luta estava escrito ali. O livro de Adolf Hitler. Ele quis gritar, mas não podia, tinha a voz trancada na garganta...
Acordou suando. Um sonho, naturalmente, um sonho ruim, mas um sonho, apenas.
Apenas? E se fosse uma advertência, aquele sonho? Uma premonição do que estava para acontecer? Foi até a sala, pegou o marcador de livros. Angustiado, perguntava-se se não deveria devolvê-lo aos amigos e cair fora daquela história. Bem gostaria de discutir essa dúvida com a namorada, mas sabia que ela se recusaria a tal. Ela era assim, decidida, voluntariosa, mesmo.
O que lhe deu uma súbita irritação: por que, diabos, tinha ela de se comportar daquela maneira? E de repente uma explicação lhe ocorreu. Só podia ser sangue judaico. Sempre suspeitara disso: certos traços faciais, aquela teimosia. Judaísmo. Coisa de raça.
Então deu-se conta: meu Deus, o que está acontecendo comigo? Este marcador está me transformando num nazista!
Num súbito impulso, jogou aquela coisa na lareira.
Que, naquele momento, estava apagada.


O escritor Moacyr Scliar escreve às segundas-feiras, nesta coluna, um texto de ficção baseado em reportagens publicadas no jornal.


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