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MOACYR SCLIAR
O marcador
Ladrões roubam marcador de livro
que pertenceu a Adolf Hitler.
Folha Online, 21.out.2002
Não estava muito claro
porque o marcador deveria
ficar com ele. Afinal, do grupo
que empreendera o bem-sucedido
roubo, ele era o menos importante, uma figura secundária: coubera-lhe apenas ficar no carro,
aguardando os dois companheiros. Que, em poucos minutos, estavam de volta com o marcador
de livros valendo, segundo estimativas deles próprios, uns 15 mil
dólares. Você vai ficar com essa
coisa, disseram-lhe, até que a gente arranje um comprador. Ele não
gostou muito da idéia, mas também não tinha como recusar. Pegou o marcador e seguiu para a
casa da namorada.
Ela não tinha chegado ainda.
Ele ficou na pequena sala, procurando um lugar para esconder o
objeto. Sob o tapete? Não lhe parecia adequado. Dentro de um
vaso? A faxineira poderia encontrá-lo. E aí viu a prateleira de livros e seu rosto se iluminou: claro!
Que melhor lugar para esconder
um marcador de livros do que um
livro?
A namorada chegou pouco depois. Ele disse que tinha uma coisa a contar, mas ela, ríspida, respondeu que não queria saber:
-Com essas companhias que
você escolheu, não pode ser nada
de bom.
E sem dar boa-noite recolheu-se
ao quarto: já passava das 11 horas. Ele suspirou, tirou a roupa e
meteu-se na cama também.
De repente ouviu um barulho
estranho. Vinha da sala. Levantou-se, foi até lá e, na semi-obscuridade, viu algo que o deixou de
cabelos em pé.
Os livros mexiam-se na prateleira. Melhor dizendo, o livro:
aquele em que tinha colocado o
marcador que pertencera a Hitler. Esse livro estava empurrando
os outros para fora da prateleira.
Um a um eles caíam. E, como que
impulsionados por uma força
misteriosa, deslizavam pelo chão,
em direção à lareira, que estava
acesa. E então caíam ou jogavam-se nas chamas. Que já tinham devorado vários volumes.
Num impulso, ele apanhou o livro. Que lembrasse, seria apenas
um romance. Mas não era uma
narrativa ficcional que estava escrita ali. Eram frases em letras
garrafais. "O supremo propósito
do Estado é preservar a pureza
racial", dizia uma delas. "Com a
ajuda do credo marxista, os judeus pretendem triunfar sobre os
povos", proclamava outra. Voltou para a página de rosto. Minha luta estava escrito ali. O livro
de Adolf Hitler. Ele quis gritar,
mas não podia, tinha a voz trancada na garganta...
Acordou suando. Um sonho,
naturalmente, um sonho ruim,
mas um sonho, apenas.
Apenas? E se fosse uma advertência, aquele sonho? Uma premonição do que estava para
acontecer? Foi até a sala, pegou o
marcador de livros. Angustiado,
perguntava-se se não deveria devolvê-lo aos amigos e cair fora daquela história. Bem gostaria de
discutir essa dúvida com a namorada, mas sabia que ela se recusaria a tal. Ela era assim, decidida,
voluntariosa, mesmo.
O que lhe deu uma súbita irritação: por que, diabos, tinha ela de
se comportar daquela maneira? E
de repente uma explicação lhe
ocorreu. Só podia ser sangue judaico. Sempre suspeitara disso:
certos traços faciais, aquela teimosia. Judaísmo. Coisa de raça.
Então deu-se conta: meu Deus,
o que está acontecendo comigo?
Este marcador está me transformando num nazista!
Num súbito impulso, jogou
aquela coisa na lareira.
Que, naquele momento, estava
apagada.
O escritor Moacyr Scliar escreve às segundas-feiras, nesta coluna, um texto de
ficção baseado em reportagens publicadas no jornal.
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