São Paulo, Domingo, 28 de Novembro de 1999


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Do inferno a redenção

Júnior, brasileiro, solteiro. Fez até a 7ª série na Escola Rosemary Kará José. Tem experiência como autônomo na área de vendas, datilografia, digitação, encadernação. Conhecimentos de Word e Excel. Início imediato.

Preparado com cuidado na semana passada, o currículo sugere que Júnior é apenas um dos milhões de desempregados. Um dos milhões de adolescentes que abandonam a escola. Um dos milhares de ambulantes que tomam as ruas.
Não por acaso, o resumo omite pelo menos dois detalhes reveladores. A escola funciona dentro do quadrilátero da Febem Tatuapé. O trabalho como vendedor inclui sorvetes e temperos que ele oferecia nos semáforos aos 8 anos. "Mas o forte mesmo foram as mercadorias roubadas."
Nos arquivos da Febem está o melhor resumo de seu passado. Currículo do crime: sete passagens pela fundação. Dezenas de roubos. Três fugas. Duas rebeliões.
Oficialmente não aparecem homicídios. Mas ocorreram. E não foram poucos. Era uma noite quente de 96. Júnior bebia em um bar da Barra Funda. Começou a conversar com outro cliente e ofereceu ao sujeito um cigarro de maconha. O desconhecido aceitou. Saíram do bar e foram para um galpão. "Enchi ele de facadas, não sei por quê. Brinquei com o sangue. Depois, o dono do bar perguntou por ele. "Já era"."
Quantas vezes a cena se repetiu nem Júnior sabe mais. "Trinta, quarenta. Eu não tinha nada a perder. A vida só me ensinou isso -a roubar e a matar. Cresci preparado para a morte, sabia que um dia um policial ia me dar um tiro na cabeça. Ia sempre para o tudo ou nada, para matar ou morrer", diz, olhos fixos no interlocutor.
Há três meses, Júnior voltou às ruas. Agora quer mais. Muito mais. Está estudando, mora em uma casa alugada por voluntários em Guaianases (zona leste de São Paulo), quer trabalhar, casar, ter filhos e ajudar os menores da Febem.
A recuperação é, por enquanto, o último capítulo da história de um menino que como outros tantos cresceu querendo explodir o mundo. "Eu tinha ódio. Queria arranjar umas bombas e jogar nos prédios. Fazer como o cara do cinema: matar todo mundo que eu via pela frente", resume ele.
"Agora quero usar essa história para ajudar os manos", explica -fala rápida, voz forte e vocabulário que ainda mistura expressões dos dois lados do muro.
Júnior é filho de Agnaldo, "ladrão de joalherias", e Cristina, "homicida, traficante e assaltante". O pai sumiu quando ele tinha alguns meses. Um ano depois, Cristina foi presa, e a criança, "não sei como", foi parar num orfanato em Brasília (DF).
Ficou no reformatório até os 6 anos, quando a mãe foragida resolveu resgatá-lo. Cresceu no barraco, com três irmãos, um padrasto, muitas armas, algumas seringas e um bocado de violência.
"Nasci no meio da criminalidade. Meu pai era do crime. Minha mãe era do crime. Nasci no meio da podridão, da pura miséria. Quando a minha mãe dava alguma coisa para a gente era com o crime", diz.
As normas da vida marginal, Júnior também aprendeu em casa. Regra um: não dedurar. "Minha mãe tomava na veia, fumava, cheirava, bebia. Meu padrasto não era do crime, era ignorante. Um dia ele me perguntou se ela tinha bebido. Disse que sim. Era verdade. Aí eles começaram a brigar. Ele batia, ela dava facada. Ela disse que ia me matar se eu alcaguetasse de novo."
Aos 7 anos, já não gostava de ninguém em casa. Fazia xixi nas calças, e foi obrigado a desfilar de fraldas nas vielas da favela. Risos. Já não gostava de ninguém na rua.
Aos 8 anos, guiado pela mãe, começou a roubar. "Ela mandava eu conversar com as mulheres enquanto ela roubava roupas."
Foi para os semáforos da cidade vender sorvete e temperos. Mas o dinheiro sumia com o vício da mãe. "Não ficava nada para mim. Aí comecei a gastar no fliperama. Foi o meu primeiro vício. Gastava tudo, tudinho. Mas sabia que se fosse para casa sem dinheiro ia apanhar. Comecei a ficar na rua, dormir em caixa de papelão. Conheci uns trombadinhas e vi neles uns amigos."
Eram cerca de 30 meninos de 6 a 9 anos que viviam pelas ruas da Barra Funda. Passavam o tempo atacando mendigos.
"Eles botavam fogo nos mendigos e me ensinaram a fazer isso. Me ensinaram a bater com o paralelepípedo na cabeça deles. Tinha que fazer para entrar na turma. E eu queria ter turma. Queria ser o pior. Porque aí eles gostavam de andar comigo."
Dos paralelepípedos, passou às facas, às pistolas, aos revólveres. Dos homens de rua passou aos pedestres, às casas, aos escritórios, às mortes por encomenda.
"A polícia me ensinou a ser violento. Eles me pegavam pequeno e diziam que queriam me ver grande com uma arma na mão. Eu não sei quantos matei. Cobrava R$ 50 antes e R$ 50 depois do serviço. Mas às vezes matava de revolta, de vontade."
Dos 10 aos 17 anos, Júnior passou pelo menos uma vez por ano pela Febem. "O juiz acha que vai melhorar sua vida, mas aquele lugar é um inferno. Porque ali a lei é o couro. E couro não cura ninguém."
Passou pela Imigrantes e pelo Tatuapé. Dormiu em valete, fumou brasa, tomou couro, arrastou o barraco, levantou a casa.
É com expressões quase incompreensíveis que ele resume os três anos que passou na instituição. Elas são sinônimo de superlotação, ociosidade, agressões e revolta.
"Eu entrava, apanhava e saía pior ainda. Quando você toma uma paulada, você vai criando ódio. Eu já estava preso, minha mãe estava presa, meus irmãos estavam na rua. Aí chega um monitor e senta a madeira em mim! Eu ficava louco. Saía querendo descontar no primeiro que encontrava. Quando eu assaltava, já tinha que bater, tinha que tirar sangue. Saía querendo ser o pior dos marginais. Queria ser o primeiro a matar, ser o primeiro em tudo. Era uma forma de eu achar que era alguma coisa. Se eu fosse aceito no crime, já estava feliz."
Entre uma saída e outra, Júnior voltava para casa. Via a mãe usar drogas no barraco. Imitava nas vielas da favela.
"Quando a minha mãe soube que eu estava usando drogas, ela disse: "Ô, mano, você tá usando drogas?". Fiquei com medo, pensei que ela ia me bater. Mas ela disse: "Ô, mano, quando for assim, traz um para eu fumar também". Começamos a fumar juntos. A roubar juntos. Era uma parceria. Mas no fundo não era isso que eu queria. Queria ter levado uma bronca."
Na Febem, Júnior era Juninho, conhecido líder de rebeliões. Destelhou a ala C do extinto complexo Imigrantes durante um motim em 97, ano em que foi internado pela sétima vez. Atirava as telhas sobre monitores, policiais e internos, quando um funcionário subiu no telhado. Engalfinharam-se, e Júnior despencou no chão.
Foram algumas fraturas e cinco dias de internação. Ganhou as páginas dos jornais e a ira dos monitores. Na volta, foi flagrado articulando um segundo levante. Espancado, ficou 13 dias na solitária.
Foi procurado por uma voluntária. "Ela foi até lá, estendeu a mão e desejou que eu ficasse em paz. Dei um tapa: "Aqui não tem paz, não, senhora, só tem maldade. A senhora quer?". Ela me disse que sabia, mas que me amava assim mesmo. Aquilo foi como uma bazuca no meu coração. Porque eu nunca tinha ouvido aquilo."
Os voluntários insistiram. Assediaram. Acenaram com possibilidades de desinternação e emprego fora da Febem.
"Eles chegaram me tratando com carinho mesmo sabendo que eu era ladrão. Nunca tinha visto isso. Diziam que eu tinha jeito. Foram os únicos que acreditaram em mim. Porque nem eu acreditava."
Um ano se passou. Acompanhado pelos voluntários ele largou as drogas, o cigarro, as rebeliões. Vomitava nas crises de abstinência. Por três meses mal podia comer.
Por bom comportamento, ganhou em fevereiro o direito de ir para uma clínica paga pelos voluntários. Saiu há três meses.
Tem na ponta da língua a misteriosa fórmula da recuperação, cassada sem sucesso há décadas por estudiosos e governantes.
"O criminoso quem cria é a sociedade. Ele é maltratado pela família, pela polícia. Chega na cadeia, é maltratado de novo. O crime só saiu de mim quando fui tratado com carinho. É isso que falta", sentencia com a experiência de quem acaba de mudar de lado no campo de batalha.
"A sociedade gosta muito de julgar, jogar o cara lá dentro e deixar se virar. Mas quando eu estava na rua, pedindo, ninguém teve coragem de me ajudar. Quando eu comecei a sentar o revólver, eles perguntaram: "Por quê? Por quê?". Porque a sociedade é assim: condena os outros, mas ajudar, poucos querem. Eu quero."
(SÍLVIA CORRÊA)

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