São Paulo, segunda-feira, 28 de novembro de 2005

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MOACYR SCLIAR

Namoro e vestibular

Namorados disputam vaga na USP. Fuvest leva casais a testarem não só o conhecimento mas também sua relação afetiva. Fovest, 22 de novembro de 2005

Esta história aconteceu há muito tempo, numa época em que a fiscalização da prova não era muito rigorosa. E só porque não era rigorosa que a história pôde acontecer.
Júlio e Francesca foram fazer vestibular para medicina. Eles eram namorados, amavam-se muito e, porque se amavam, tinham decidido seguir a mesma profissão, que ambos, aliás, admiravam muito. Naturalmente, estudaram juntos para o exame; mas aí havia uma diferença. Francesca, que era inteligente, aprendia as coisas com facilidade. Júlio, que tinha um raciocínio mais lento, não conseguia acompanhá-la. Mas, afinal, eram namorados e Francesca tratava de ajudá-lo como podia, garantindo que no fim tudo correria bem e que seriam ambos aprovados.
Veio o dia da prova, realizada no salão nobre da faculdade de medicina local, que funcionava num antigo e majestoso prédio. O local não era grande e as mesas não ficavam muito separadas. Júlio e Francesca sentaram-se juntos para realizar a primeira prova, que era então a de química. Foram distribuídas as questões. Todos puseram-se a trabalhar.
Júlio estava apavorado. Ele não sabia nada do que fora perguntado. Era como se o conhecimento tivesse sumido de repente de sua cabeça. Notou então que o único fiscal da prova olhava distraidamente pela janela. Aproveitou e, em voz baixa, perguntou a Francesca qual era a resposta da primeira questão. Sem nem sequer olhá-lo, ela respondeu, em tom baixo, mas firme, que colar no vestibular era proibido.
Júlio não podia acreditar no que estava ouvindo. Francesca, a sua Francesca, negava-se a ajudá-lo naquele instante de angústia? Aquilo representava um duplo choque e ele ficou ali, imóvel, atarantado, sem saber o que fazer ou o que pensar.
Ao lado dele estava sentada Luciana. Amiga de ambos, ela nutria por Júlio uma paixão secreta. Percebendo o que acontecia, e num impulso, sussurrou ao rapaz a resposta da primeira questão. E depois a resposta da segunda, e a resposta da terceira.
Júlio e Francesca foram aprovados, Luciana não -muito boa em química, ela era fraca em física, e este exame acabou por excluí-la. Seu único consolo era ter ajudado o amado.
Júlio e Francesca formaram-se há vários anos. Ambos são cirurgiões. Ah, sim, e estão casados. O trabalho no campo operatório acabou por reaproximá-los. São muito felizes. E nunca mencionam o dia em que fizeram o exame de química no vestibular.


Moacyr Scliar escreve às segundas, nesta coluna, um texto de ficção baseado em reportagens publicadas no jornal.

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