São Paulo, terça-feira, 28 de novembro de 2006

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RUBEM ALVES

Pocinhos do Rio Verde


Construí um chalezinho lá, no alto de uma colina, donde vejo as montanhas no horizonte. E plantei um cemitério


POCINHOS DO RIO Verde é um lugarzinho no sul das Minas Gerais. Não chega a ser uma cidade. É um subdistrito da cidade de Caldas. A se acreditar nos geólogos, Pocinhos está situada dentro da cratera de um vulcão extinto, de cem quilômetros de diâmetro, o que explicaria a presença ali de metais radioativos e de zircônio.
Em tempos antigos, a Alemanha andou importando zircônio de Pocinhos para fazer o aço de seus canhões na 1ª Guerra Mundial. Minha imaginação me levou a pensar que o zircônio de Pocinhos tenha sido usado nos canhões "Grande Berta" que foram usados para bombardear Paris, distante cem quilômetros. Cheguei até a imaginar uma manchete de jornal: "Pocinhos do Rio Verde canhoneia Paris!"
É esta origem vulcânica que explica as águas termais que, no passado, fizeram de Pocinhos um lugar de curas. Getúlio Vargas ia a Pocinhos para tratar de suas úlceras e amebas e se hospedava no "Grande Hotel", monumento dos tempos grandiosos do passado. Nesse hotel estão fotografias do ditador com charuto na mão cercado de puxa-sacos, todos vestidos de linho branco, com exceção do bispo, em batina preta.
Construí um chalezinho lá, no alto de uma colina, donde vejo as montanhas longe no horizonte. E plantei um cemitério. Para cada amigo que morre ou vai morrer planto uma árvore que leva o seu nome. Já me plantei.
O bom de Pocinhos são as matas, os riachinhos, as cachoeiras, os pássaros, as trilhas e as gentes. Até uma onça parda apareceu, aterrorizando os fazendeiros. O que teria levado a onça a deixar o lugar que lhe pertencia para descer até a planície?
Dos eventos que marcam a vida de Pocinhos o mais famoso é a "Festa do Biscoito", que acontece nos últimos três fins de semana de julho. Biscoitões mineiros de polvilho de 20 cm de comprimento saem sem cessar dos enormes fornos de barro. Podem ser comidos puros ou acompanhando canjiquinha de quirera, com costeleta de porco, pedaços de frango, couve rasgada e pimenta. Quando menino, eu gostava de furar os biscoitões com o dedo indicador para enchê-los com caldo de feijão, o que continuo a fazer.
Mas eu acho que, pra ser mineira, essa festa tinha de ter música mineira também. Mas aí vieram as bandas de rock que não têm memórias de Minas e se apossaram do palco fazendo uma barulheira danada. Biscoitão não combina com rock. Os jovens que não têm memória gostam. Os velhos que têm memória sofrem.
Há também a incrível procissão de carros de bois, todos enfeitados, que enchem as ruas de Caldas, vindos de cidades vizinhas. Carro de boi, antes de ser um meio de transporte, é instrumento musical. O carreiro, de pé, é o maestro que faz seu carro cantar.
O silêncio tranqüilo já está sendo profanado pelos estouros das motos. O prazer que têm os motoqueiros nos estouros que saem pelo orifício do cano de escapamento, um psicanalista já diagnosticou, é uma manifestação de regressão à fase dos prazeres anais.
Lá longe se vê o pico da Pedra Branca. Já subi até o topo com alguns amigos. Agora não mais me atrevo. As pernas e o fôlego não agüentam. Lá em cima, em altura de urubu não ir, depois de atravessar jardins agrestes e piscinas naturais, é a vista que não acaba mais. Nada perturba o silêncio. Os faladores se calam. Só se ouve a música do vento.
Mas aí aconteceu uma tragédia que estragou o Paraíso. Sobre ela escreverei noutro dia.


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