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Após 20 anos, vítimas do Bateau Mouche esperam indenização
Tragédia completa 20 anos na próxima quarta-feira sem que ninguém tenha pagado por ela; 55 pessoas morreram no naufrágio
Apenas um parente de um garçom recebeu o equivalente a R$ 20 mil após entrar com ação contra um restaurante dos donos do barco
PAULO SAMPAIO
DA REPORTAGEM LOCAL
"O barco começou a adernar
perigosamente, inclinando cada
vez mais para os lados. Minha
mulher ficou apavorada. Para
tranqüilizá-la, eu fui atrás de
uns coletes salva-vidas que tinha visto assim que embarcamos. Saí da parte mais alta, na
proa, desci a escada caracol em
direção à popa, mas não deu
tempo. Naquele instante, aconteceu a cena inacreditável. Montes de pessoas em trajes de gala
voaram para o mar, junto com
mesas, comida, copos. Em minutos, todos estariam na água se
agarrando a quem sabia nadar..." (Plínio Donadio, 70, sobrevivente do naufrágio do Bateau Mouche 4, em 1988).
Na quarta-feira, às 23h50, a
tragédia de repercussão mundial completa 20 anos -sem
que ninguém tenha pagado por
ela. Apenas um parente de um
garçom recebeu o equivalente a
R$ 20 mil -isso porque percorreu um caminho mais curto. O
seu advogado entrou com a
ação contra o restaurante Sol e
Mar, dos donos do barco, e não
contra o Bateau Mouche, como
todos os outros.
Depois de adernar, o barco
emborcou e afundou 20 metros, no trecho entre a ilha de
Cotunduba e o Morro da Urca,
em frente à praia Vermelha.
"Olha que maravilha!"
O primeiro contato da família Donadio com o Bateau Mouche foi no Natal de 1987, quando Plínio jantava com a mulher,
Vitória, e os filhos no restaurante Sol e Mar, na praia de Botafogo, no Rio, e recebeu um folheto de propaganda do Réveillon no barco.
"Olha que maravilha isso",
disse Vitória, mostrando para
os filhos a foto do barco iluminado. "A gente poderia passar o
Réveillon no mar", sugeriu.
Mas Plínio achou que estava
muito em cima da hora, eles já
tinham programado ver os fogos com amigos na praia de Copacabana, e convenceu a mulher a deixar a festa no barco
para o ano seguinte.
Evidentemente, não passou
pela cabeça dele que ela se lembraria da promessa um ano depois, muito menos que conseguiria, de São Paulo, onde moravam, comprar cinco ingressos na véspera do Réveillon e,
menos ainda, que o Bateau
Mouche naufragaria deixando
55 mortos, entre eles a própria
Vitória. "Estávamos eu, ela,
uma filha grávida de cinco meses, meu genro e o meu caçula,
de 11 anos", conta.
Culpa de quem?
O processo criminal contra o
grupo de espanhóis que empresariavam o Bateau Mouche
prescreveu antes de a tragédia
completar dez anos, deixando
os sete sócios do barco e os dois
da agência de turismo Itatiaia
(que vendeu os ingressos) livres. Todos foram absolvidos
em primeira instância, pelo juiz
Jasmin Simões Costa.
Quatro saíram do Brasil pela
porta da frente, apresentando
os passaportes em dia. Os dois
menos ricos -que trabalhavam
como gerentes no restaurante,
mas tinham participação na sociedade- foram condenados
em segunda instância. Cumpriram quatro meses da pena,
em regime semi-aberto, e fugiram com um terceiro, condenado por sonegação fiscal, para a
Europa.
"Não me pergunte como isso
acontece, como criminosos
saem do país assim. Eu fico
apavorado com esses mecanismos", diz o advogado de defesa
de 26 parentes de vítimas, em
32 ações, João Tancredo.
Entre seus clientes estão
Bernardo e João Mário, filhos
da atriz Yara Amaral, e o ex-ministro do Planejamento Anibal
Teixeira, último a entrar com
ação cível, há dez dias, antes do
fim do prazo para a reclamação,
no próximo dia 31.
"Foi bom para o ministro"
Para se fortalecer na ação,
Bernardo, hoje com 35, fundou
com Tancredo uma associação
de parentes das vítimas do naufrágio chamada Bateau Mouche Nunca Mais.
"Cheguei a ir à Espanha com
o [então ministro da Justiça]
Renan Calheiros, na tentativa
de conseguir da ministra da
Justiça de lá, Margarida Mariscal y Igantes, a extradição dos
sócios que haviam fugido. Mas
eles são espanhóis, não poderiam ser extraditados para fora
do próprio país. A notícia da
viagem saiu em tudo o que é lugar, claro. Foi bom para o ministro e para a comitiva dele,
que conheceu os melhores restaurantes da Espanha."
Bernardo foi também a Brasília para conversar com o deputado constituinte Michel Temer. "Ele me disse: "Como eu
posso te ajudar?" Pensei, depois, que esse seria um ótimo
título de um livro sobre o assunto. Se um deputado constituinte não sabe como ajudar,
como eu vou saber?"
A culpa é dos mortos
Os advogados do grupo de espanhóis colocaram a culpa em
dois mortos -o mestre arrais
Camilo Faro Costa e o engenheiro Mario Triller- e na Capitania dos Portos, que vistoriou o Bateau Mouche no dia 29
-quando Vitória Donadio estava prestes a comprar os ingressos- e o liberou para navegar.
"Naquelas condições, o barco
não poderia ter saído. Havia
uma série de irregularidades na
reforma que eles fizeram", diz o
advogado George Tavares.
De acordo com o laudo publicado um mês depois, o material
utilizado na reforma do barco e
as duas caixas-d'água instaladas na parte superior pesaram
demais e comprometeram a estabilidade do Bateau Mouche.
Em dado momento, por causa
da má vedação e de problemas
na tubulação do esgoto, havia
1,5 metro de água no chão do
banheiro. O documento diz ainda que não seria seguro ter mais
de 62 pessoas a bordo -naquela noite, embarcaram 153.
Na ocasião, foi aberto inquérito policial militar e, posteriormente, já fora da esfera de apuração do então Ministério da
Marinha, o caso Bateau Mouche passou à competência da
Justiça Militar. Três militares
foram condenados a penas que
variaram de dois meses a um
ano e seis meses de detenção.
Nenhum deles foi submetido à
Justiça comum.
Donadio lembra que, como
chegou cedo ao barco, não lhe
pareceu tão cheio. "Faltava
muita gente ainda, e a impressão era boa, estava tudo iluminado, as pessoas bem vestidas,
garçons passando."
O Bateau Mouche zarpou por
volta de 22h para a baía de Guanabara. Apesar do mar tranqüilo, típico de uma baía, o barco
adernava anormalmente. "Em
dado momento, fomos interpelados por uma lancha da Capitania dos Portos, que nos fez
voltar ao píer, alegando irregularidades", continua Donadio.
Para ele, foi ali, na volta, que
se decidiu o destino trágico daquelas 55 vítimas. De acordo
com o empresário, os oficiais da
capitania acabaram liberando o
Bateau Mouche para voltar a
navegar -os detalhes da negociação, ninguém até hoje soube
explicar.
Desta vez, o mestre arrais
saiu da baía, para dar a volta no
morro do Pão de Açúcar. O barco não segurou a onda.
Indenização em seis meses
Em reportagens da época, o
então defensor público Roberto Vitagliano, designado para o
caso pelo procurador-geral da
defensoria Técio Lins e Silva,
afirmava que, para serem indenizados, os parentes das vítimas deveriam apresentar os
atestados de óbito, da ocorrência policial e da prova de ganhos
mensais. A decisão final, segundo estimativa do defensor, sairia no período de um ano.
Vinte anos depois, Vitagliano
explica que "o caso era muito
complexo".
"Deixei de acompanhar há
muito tempo, mas era um processo que envolvia a Marinha e
a Justiça estadual. E existem
muitos detalhes em um processo assim. Você vê o caso desse
PM que matou a criança [no
Rio]: a população fica indignada, mas o juiz pode entender
que não era a intenção do policial matar. No Bateau Mouche,
a mesma coisa, aqueles empresários provavelmente não tinham essa intenção. Eu não
achava isso. Entendia que eles
assumiram o risco pela avidez
do lucro. Mas o que conta é a
decisão do juiz."
Técio Lins e Silva, que hoje é
membro do Conselho Nacional
de Justiça, órgão fiscalizador
do Judiciário, reagiu nervoso,
ao telefonema da Folha: "Não
estive envolvido com isso, não
era minha área. Era um caso de
política e cidadania".
Visão do inferno
Plínio Donadio conseguiu
subir no casco do barco emborcado, para ver se avistava a mulher e os filhos. "Eu gritava desesperado, as pessoas pedindo
socorro, mas eu queria achar
minha família. Aquele monte
de gente no mar, na escuridão,
era a visão do inferno."
Nesse momento, o Casablanca, um iate de 130 pés (cerca de
40 metros), se aproximou. "Tirei os sapatos e nadei. Mas determinadas passagens eu simplesmente apaguei da minha
memória. Não me lembro de
ter subido no barco, só de quando estava lá dentro. Eu queria
muito me encontrar com o dono de novo, para agradecer por
ter me salvado."
Fabricado em 1946, o Casablanca não pertence mais ao
empresário Oscar Gabriel Jr., à
época dono de uma cadeia de
óticas no Rio. O novo proprietário é o empresário Jorge
Adrizzo, dono da Saveiro's
Tour, empresa de aluguel de
barcos.
"O Oscar era muito rico e generosíssimo, playboyzão mesmo, um Jorginho Guinle. Tocava o rebu naquele barco. Mas
foi perdendo tudo, e acabou
tendo de vendê-lo", conta.
Quando Donadio chegou ao
Iate Clube do Rio, ouviu gritarem seu nome: "Era meu genro.
Perguntei pelos meus filhos,
mas não estavam com ele. Comecei a andar de um lado para
o outro, que nem um maluco,
atrás de notícias. Um homem
se aproximou, para dizer que tinha uma criança entre os corpos estirados em uma ponta do
píer. Fui lá, mas não era meu filho, e sim uma menininha de
uns três anos".
De manhãzinha
Mortos ou vivos, Flávio Donadio e a irmã, Cláudia, muito
provavelmente estariam no Iate Clube ou na Marina da Glória. Plínio Donadio passou a
noite indo de um para o outro,
até que, por volta das 6h, os
avistou na Marina.
Eles contaram que foram salvos, com muitos outros náufragos, pelo pescador Jorge de
Souza Viana, que hoje vive na
Região dos Lagos. "Quando o
Bateau Mouche virou, minha
filha grávida ficou embaixo do
casco. Precisou mergulhar,
dar a volta nele e emergir. Por
sorte, ao sair na superfície,
percebeu que estava ao lado do
irmão."
Donadio lembra que, ao avistar os filhos na marina, "era de
manhãzinha". "Eu estava esgotado. Fiquei feliz, mas faltava a
mãe deles. Nenhum dos dois
sabia onde estava. Imediatamente, entendi que ela havia
morrido." Ele foi encontrá-la
no fim do dia 2, em um necrotério na Lapa, no Rio.
Acreditaram na punição
O advogado João Tancredo
diz que, se seus clientes tivessem processado apenas a União
(pelo erro da Capitania dos
Portos), provavelmente já teriam sido ressarcidos.
"Por questão de decência e
também tomados pela revolta,
eles acreditaram que os responsáveis pelo acidente seriam
punidos e entraram com ações
criminais. Acontece que essas
ações interferem no encaminhamento das cíveis, e vice-versa, tornando o processo ainda mais moroso", diz Tancredo.
Ele conseguiu ver aprovadas
sentenças indenizatórias, embora ninguém tenha ganhado
um tostão. Tancredo diz que arrestou R$ 40 milhões em bens
dos empresários do Bateau
Mouche -mas é preciso concluir o processo para usá-los.
Por muitos anos, Donadio e a
família ignoraram as passagens
de ano. "Era um momento muito difícil para a gente." Cláudia
deu à luz um menino chamado
Lucas. Hoje é mãe de três. Flávio, agora com 31, fez química,
cursou informática, casou-se e
trabalha na área. Donadio refez
a vida com uma dermatologista, com quem mora há 18 anos.
Embora ainda mantenha o
processo -e queira ver resultados-, ele sabe que nada vai ressarcir as seqüelas dele e dos filhos. "Estão aprovando uma
sentença que deve garantir aos
parentes das vítimas R$ 200
mil. Será que eu perdi a noção
das coisas: quanto você acha
que vale uma vida?"
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