São Paulo, domingo, 28 de dezembro de 2008

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Após 20 anos, vítimas do Bateau Mouche esperam indenização

Tragédia completa 20 anos na próxima quarta-feira sem que ninguém tenha pagado por ela; 55 pessoas morreram no naufrágio

Apenas um parente de um garçom recebeu o equivalente a R$ 20 mil após entrar com ação contra um restaurante dos donos do barco

PAULO SAMPAIO
DA REPORTAGEM LOCAL

"O barco começou a adernar perigosamente, inclinando cada vez mais para os lados. Minha mulher ficou apavorada. Para tranqüilizá-la, eu fui atrás de uns coletes salva-vidas que tinha visto assim que embarcamos. Saí da parte mais alta, na proa, desci a escada caracol em direção à popa, mas não deu tempo. Naquele instante, aconteceu a cena inacreditável. Montes de pessoas em trajes de gala voaram para o mar, junto com mesas, comida, copos. Em minutos, todos estariam na água se agarrando a quem sabia nadar..." (Plínio Donadio, 70, sobrevivente do naufrágio do Bateau Mouche 4, em 1988).

Na quarta-feira, às 23h50, a tragédia de repercussão mundial completa 20 anos -sem que ninguém tenha pagado por ela. Apenas um parente de um garçom recebeu o equivalente a R$ 20 mil -isso porque percorreu um caminho mais curto. O seu advogado entrou com a ação contra o restaurante Sol e Mar, dos donos do barco, e não contra o Bateau Mouche, como todos os outros.
Depois de adernar, o barco emborcou e afundou 20 metros, no trecho entre a ilha de Cotunduba e o Morro da Urca, em frente à praia Vermelha.

"Olha que maravilha!"
O primeiro contato da família Donadio com o Bateau Mouche foi no Natal de 1987, quando Plínio jantava com a mulher, Vitória, e os filhos no restaurante Sol e Mar, na praia de Botafogo, no Rio, e recebeu um folheto de propaganda do Réveillon no barco.
"Olha que maravilha isso", disse Vitória, mostrando para os filhos a foto do barco iluminado. "A gente poderia passar o Réveillon no mar", sugeriu.
Mas Plínio achou que estava muito em cima da hora, eles já tinham programado ver os fogos com amigos na praia de Copacabana, e convenceu a mulher a deixar a festa no barco para o ano seguinte.
Evidentemente, não passou pela cabeça dele que ela se lembraria da promessa um ano depois, muito menos que conseguiria, de São Paulo, onde moravam, comprar cinco ingressos na véspera do Réveillon e, menos ainda, que o Bateau Mouche naufragaria deixando 55 mortos, entre eles a própria Vitória. "Estávamos eu, ela, uma filha grávida de cinco meses, meu genro e o meu caçula, de 11 anos", conta.

Culpa de quem?
O processo criminal contra o grupo de espanhóis que empresariavam o Bateau Mouche prescreveu antes de a tragédia completar dez anos, deixando os sete sócios do barco e os dois da agência de turismo Itatiaia (que vendeu os ingressos) livres. Todos foram absolvidos em primeira instância, pelo juiz Jasmin Simões Costa.
Quatro saíram do Brasil pela porta da frente, apresentando os passaportes em dia. Os dois menos ricos -que trabalhavam como gerentes no restaurante, mas tinham participação na sociedade- foram condenados em segunda instância. Cumpriram quatro meses da pena, em regime semi-aberto, e fugiram com um terceiro, condenado por sonegação fiscal, para a Europa.
"Não me pergunte como isso acontece, como criminosos saem do país assim. Eu fico apavorado com esses mecanismos", diz o advogado de defesa de 26 parentes de vítimas, em 32 ações, João Tancredo.
Entre seus clientes estão Bernardo e João Mário, filhos da atriz Yara Amaral, e o ex-ministro do Planejamento Anibal Teixeira, último a entrar com ação cível, há dez dias, antes do fim do prazo para a reclamação, no próximo dia 31.

"Foi bom para o ministro"
Para se fortalecer na ação, Bernardo, hoje com 35, fundou com Tancredo uma associação de parentes das vítimas do naufrágio chamada Bateau Mouche Nunca Mais.
"Cheguei a ir à Espanha com o [então ministro da Justiça] Renan Calheiros, na tentativa de conseguir da ministra da Justiça de lá, Margarida Mariscal y Igantes, a extradição dos sócios que haviam fugido. Mas eles são espanhóis, não poderiam ser extraditados para fora do próprio país. A notícia da viagem saiu em tudo o que é lugar, claro. Foi bom para o ministro e para a comitiva dele, que conheceu os melhores restaurantes da Espanha."
Bernardo foi também a Brasília para conversar com o deputado constituinte Michel Temer. "Ele me disse: "Como eu posso te ajudar?" Pensei, depois, que esse seria um ótimo título de um livro sobre o assunto. Se um deputado constituinte não sabe como ajudar, como eu vou saber?"

A culpa é dos mortos
Os advogados do grupo de espanhóis colocaram a culpa em dois mortos -o mestre arrais Camilo Faro Costa e o engenheiro Mario Triller- e na Capitania dos Portos, que vistoriou o Bateau Mouche no dia 29 -quando Vitória Donadio estava prestes a comprar os ingressos- e o liberou para navegar.
"Naquelas condições, o barco não poderia ter saído. Havia uma série de irregularidades na reforma que eles fizeram", diz o advogado George Tavares.
De acordo com o laudo publicado um mês depois, o material utilizado na reforma do barco e as duas caixas-d'água instaladas na parte superior pesaram demais e comprometeram a estabilidade do Bateau Mouche. Em dado momento, por causa da má vedação e de problemas na tubulação do esgoto, havia 1,5 metro de água no chão do banheiro. O documento diz ainda que não seria seguro ter mais de 62 pessoas a bordo -naquela noite, embarcaram 153.
Na ocasião, foi aberto inquérito policial militar e, posteriormente, já fora da esfera de apuração do então Ministério da Marinha, o caso Bateau Mouche passou à competência da Justiça Militar. Três militares foram condenados a penas que variaram de dois meses a um ano e seis meses de detenção. Nenhum deles foi submetido à Justiça comum.
Donadio lembra que, como chegou cedo ao barco, não lhe pareceu tão cheio. "Faltava muita gente ainda, e a impressão era boa, estava tudo iluminado, as pessoas bem vestidas, garçons passando."
O Bateau Mouche zarpou por volta de 22h para a baía de Guanabara. Apesar do mar tranqüilo, típico de uma baía, o barco adernava anormalmente. "Em dado momento, fomos interpelados por uma lancha da Capitania dos Portos, que nos fez voltar ao píer, alegando irregularidades", continua Donadio.
Para ele, foi ali, na volta, que se decidiu o destino trágico daquelas 55 vítimas. De acordo com o empresário, os oficiais da capitania acabaram liberando o Bateau Mouche para voltar a navegar -os detalhes da negociação, ninguém até hoje soube explicar.
Desta vez, o mestre arrais saiu da baía, para dar a volta no morro do Pão de Açúcar. O barco não segurou a onda.

Indenização em seis meses
Em reportagens da época, o então defensor público Roberto Vitagliano, designado para o caso pelo procurador-geral da defensoria Técio Lins e Silva, afirmava que, para serem indenizados, os parentes das vítimas deveriam apresentar os atestados de óbito, da ocorrência policial e da prova de ganhos mensais. A decisão final, segundo estimativa do defensor, sairia no período de um ano.
Vinte anos depois, Vitagliano explica que "o caso era muito complexo".
"Deixei de acompanhar há muito tempo, mas era um processo que envolvia a Marinha e a Justiça estadual. E existem muitos detalhes em um processo assim. Você vê o caso desse PM que matou a criança [no Rio]: a população fica indignada, mas o juiz pode entender que não era a intenção do policial matar. No Bateau Mouche, a mesma coisa, aqueles empresários provavelmente não tinham essa intenção. Eu não achava isso. Entendia que eles assumiram o risco pela avidez do lucro. Mas o que conta é a decisão do juiz."
Técio Lins e Silva, que hoje é membro do Conselho Nacional de Justiça, órgão fiscalizador do Judiciário, reagiu nervoso, ao telefonema da Folha: "Não estive envolvido com isso, não era minha área. Era um caso de política e cidadania".

Visão do inferno
Plínio Donadio conseguiu subir no casco do barco emborcado, para ver se avistava a mulher e os filhos. "Eu gritava desesperado, as pessoas pedindo socorro, mas eu queria achar minha família. Aquele monte de gente no mar, na escuridão, era a visão do inferno."
Nesse momento, o Casablanca, um iate de 130 pés (cerca de 40 metros), se aproximou. "Tirei os sapatos e nadei. Mas determinadas passagens eu simplesmente apaguei da minha memória. Não me lembro de ter subido no barco, só de quando estava lá dentro. Eu queria muito me encontrar com o dono de novo, para agradecer por ter me salvado."
Fabricado em 1946, o Casablanca não pertence mais ao empresário Oscar Gabriel Jr., à época dono de uma cadeia de óticas no Rio. O novo proprietário é o empresário Jorge Adrizzo, dono da Saveiro's Tour, empresa de aluguel de barcos.
"O Oscar era muito rico e generosíssimo, playboyzão mesmo, um Jorginho Guinle. Tocava o rebu naquele barco. Mas foi perdendo tudo, e acabou tendo de vendê-lo", conta.
Quando Donadio chegou ao Iate Clube do Rio, ouviu gritarem seu nome: "Era meu genro. Perguntei pelos meus filhos, mas não estavam com ele. Comecei a andar de um lado para o outro, que nem um maluco, atrás de notícias. Um homem se aproximou, para dizer que tinha uma criança entre os corpos estirados em uma ponta do píer. Fui lá, mas não era meu filho, e sim uma menininha de uns três anos".

De manhãzinha
Mortos ou vivos, Flávio Donadio e a irmã, Cláudia, muito provavelmente estariam no Iate Clube ou na Marina da Glória. Plínio Donadio passou a noite indo de um para o outro, até que, por volta das 6h, os avistou na Marina.
Eles contaram que foram salvos, com muitos outros náufragos, pelo pescador Jorge de Souza Viana, que hoje vive na Região dos Lagos. "Quando o Bateau Mouche virou, minha filha grávida ficou embaixo do casco. Precisou mergulhar, dar a volta nele e emergir. Por sorte, ao sair na superfície, percebeu que estava ao lado do irmão."
Donadio lembra que, ao avistar os filhos na marina, "era de manhãzinha". "Eu estava esgotado. Fiquei feliz, mas faltava a mãe deles. Nenhum dos dois sabia onde estava. Imediatamente, entendi que ela havia morrido." Ele foi encontrá-la no fim do dia 2, em um necrotério na Lapa, no Rio.

Acreditaram na punição
O advogado João Tancredo diz que, se seus clientes tivessem processado apenas a União (pelo erro da Capitania dos Portos), provavelmente já teriam sido ressarcidos.
"Por questão de decência e também tomados pela revolta, eles acreditaram que os responsáveis pelo acidente seriam punidos e entraram com ações criminais. Acontece que essas ações interferem no encaminhamento das cíveis, e vice-versa, tornando o processo ainda mais moroso", diz Tancredo.
Ele conseguiu ver aprovadas sentenças indenizatórias, embora ninguém tenha ganhado um tostão. Tancredo diz que arrestou R$ 40 milhões em bens dos empresários do Bateau Mouche -mas é preciso concluir o processo para usá-los.
Por muitos anos, Donadio e a família ignoraram as passagens de ano. "Era um momento muito difícil para a gente." Cláudia deu à luz um menino chamado Lucas. Hoje é mãe de três. Flávio, agora com 31, fez química, cursou informática, casou-se e trabalha na área. Donadio refez a vida com uma dermatologista, com quem mora há 18 anos.
Embora ainda mantenha o processo -e queira ver resultados-, ele sabe que nada vai ressarcir as seqüelas dele e dos filhos. "Estão aprovando uma sentença que deve garantir aos parentes das vítimas R$ 200 mil. Será que eu perdi a noção das coisas: quanto você acha que vale uma vida?"


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