São Paulo, sexta, 29 de maio de 1998

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"Não há recursos para atender todos'

LUCIA MARTINS
da Reportagem Local

O infectologista David Uip afirma que o atendimento universal -previsto na Constituição- é um "engano de retórica". Segundo Uip, não é possível dar um atendimento decente a toda a população com os recursos disponíveis hoje para a Saúde.
"O Estado tem de ir a público dizer o que pode e o que não pode fazer. O que não pode ocorrer são duas filas: uma que não anda e outra que anda, que é a do convênio. Não pode haver fila dupla", afirma Uip, que é professor livre-docente de doenças infecto-contagiosas e parasitárias da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo e diretor da Casa da Aids.
O infectologista afirma que a única solução para a crise é retirar das "costas" do SUS (Sistema Único de Saúde) os 41 milhões de pessoas que hoje pagam planos de saúde.
"Se você tira da responsabilidade do SUS os 41 milhões, quem fica vai ser mais bem atendido."


Folha - Na sua opinião, o que está errado com a saúde do país? Trata-se de uma questão de modelo, de recursos ou de gestão?
David Uip -
Acho que é um misto de falta de dinheiro e de má gestão. Duas coisas são claras. Não é possível que quem paga plano de saúde também se sirva da rede do SUS (Sistema Único de Saúde). Os planos têm de ser responsáveis por seus segurados. Têm de cobrir tudo. Na minha cabeça, não tem lógica que o SUS acabe pagando também por quem paga planos ou seguros saúde.
Folha - E os recursos para a saúde, são insuficientes?
Uip
- A saúde tem de ter mais recursos. Falta dinheiro, é claro. Mas tem de haver também um gerenciamento com mais competência. O dinheiro que sai do caixa tem de chegar igual na ponta. Isso só ocorre com vigilância. Quem vai fiscalizar? Na minha opinião, um conselho comunitário. Então, são necessários recursos, gerenciamento e priorização.
Folha - O sistema proposto na Constituição -o atendimento universal convivendo com a iniciativa privada- é viável para o país?
Uip -
Acho que isso é um engano de retórica. Não há recursos para atender todos com dignidade. Acho que o Estado tem de saber até onde pode chegar, e a sociedade vai ter de se virar para fazer o resto. O modelo já está pronto.
São os planos de saúde e convênios que têm de arcar com o que está combinado. Sou a favor do lucro, mas, em saúde, deve ser um lucro com ética. O que não pode ocorrer são duas filas: uma que não anda e outra que anda, que é a do convênio. Não pode haver fila dupla. Se você tira da responsabilidade do SUS os 41 milhões de pessoas que têm plano de saúde, o atendimento para quem fica vai melhorar. Aí essa mentira acaba.
Folha - Como o sr. vê o papel de modelos como as fundações, as organizações sociais e o PAS?
Uip -
O PAS é uma idéia interessante. Mas acho que há falha na fiscalização dos recursos. É nisso que o sistema tem de funcionar, e perfeitamente. Em saúde, não pode haver mau uso de verbas. Isso é um crime. Se o indivíduo rouba do serviço público, tem de ser preso. Mas, se rouba da saúde, ele tem de sofrer as piores punições. Pena máxima para esses criminosos. Já as fundações, como a Zerbini (do Instituto do Coração de São Paulo), costumam funcionar bem. No Incor, ela conseguiu elevar a qualidade do atendimento. O grande problema é que, como é um instituto muito respeitado, ele atende uma demanda muito grande, o que faz com que o pronto-socorro esteja sempre no gargalo.
Folha - Na questão da Aids, o sr. também defende que os recursos têm de ser gastos apenas com quem realmente não pode pagar?
Uip -
O fato de distribuir remédios contra o vírus (HIV, que causa a Aids) para todos acaba barateando o custo final da doença. Isso já está provado. A Casa da Aids reduziu 84% dos custos após o uso dos medicamentos. Mas, ao mesmo tempo, acho que as empresas poderiam participar mais, ajudando a comprar remédios.



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