São Paulo, segunda-feira, 29 de junho de 2009

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MOACYR SCLIAR

Zona de sombra


Ao menor choro do bebê, ela pulava da cama como que impulsionada por uma mola, mas a ele, mal dava atenção


 

Pesquisadores mostraram como as mães desenvolvem um ouvido tão aguçado para o choro de seus bebês, pela redução da atividade nas áreas cerebrais não direcionadas especificamente para o choro dos filhos. "Imagine um refletor iluminando um cantor no palco. Se outras luzes estiverem acesas, o artista não aparece tanto. Mas se todo o resto estiver escuro, o refletor destacará o artista muito bem", explicou Robert Liu, da Emory University. Folha Ciência, 15.jun.09

 

QUANDO a mulher teve o primeiro filho, ele deveria, naturalmente, sentir-se feliz e orgulhoso. Isso não aconteceu, por uma razão da qual não falou a ninguém: suspeitava que o filho fosse de outro. Não tinha nenhuma prova de que a esposa o traísse; ao contrário, ela parecia fiel e dedicada. Mas nove meses antes ele passara algumas semanas fora, a serviço da empresa.
Pouco depois de sua volta ela anunciou-lhe a gravidez. Ele tentou mostrar entusiasmo, e, em parte, conseguiu: ela não notou sua mágoa. Que, contudo, foi crescendo à medida que o tempo passava.
Ele passou a vigiá-la e notou algo que o desagradou profundamente; ao menor chorinho do bebê, ela pulava da cama como que impulsionada por uma mola e ia atender a criança. Mas a ele, ao marido, mal dava atenção. Até fez um teste: uma noite começou a gemer, primeiro baixinho, depois mais alto, como se estivesse passando mal.
Inútil: a esposa, profundamente adormecida, nem sequer se mexeu. Mas quando, já de madrugada, o bebê começou a chorar ela pôs-se de pé num salto.
Resolveu comentar o assunto com um amigo, médico pediatra. E o fez afetando despreocupação. O amigo riu: "É assim mesmo, meu caro. Coisas da natureza".
E explicou que, de acordo com as mais recentes teorias científicas, o choro do bebê conseguia, de forma absolutamente soberana, ativar o cérebro da mãe, que aparecia iluminado nos exames especializados. "Ou seja: o bebê acende o cérebro da mãe. E deixa todo o resto, inclusive você, na zona de sombra."
Nenhuma expressão poderia definir melhor o que ocorrera: ele agora vivia na zona de sombra. Ele e os seus espectros, ele e seus fantasmas. Ah, mas a isso não se resignaria.
De forma alguma. Como Goethe no leito de morte, bradaria: "Mais luz!" E lutaria por essa luz com os meios que estivessem a seu alcance. Mas... quais eram esses meios? Como poderia ele, da mesma maneira que o bebê, iluminar o cérebro da mulher que, apesar de tudo, ele amava?
A resposta logo lhe ocorreu: o choro. O choro seria o abre-te Sésamo que lhe permitiria sair da escura caverna em que se encontrava. Ele tinha de chorar como o bebê, e começou a treinar para isso. Gravou o choro da criança e passou horas a ouvi-lo. Depois de ensaiar durante semanas, achou que estava pronto para o grande teste: no meio da noite acordaria a mulher com o simulado chorinho. Ela descobriria então que ele também existia; os dois se abraçariam e fariam amor. O nenê que berrasse à vontade.
O teste decisivo seria realizado na noite de seu aniversário. Mas, ao jantar, enquanto brindavam à data, ela disse que tinha um presente para ele: estava grávida de novo.
Desta vez ele não tem qualquer dúvida a respeito da paternidade da criança. E está muito feliz em viver numa zona de sombra. Onde às vezes até esboça o chorinho que tão cuidadosamente ensaiou.


MOACYR SCLIAR escreve, às segundas-feiras, um texto de ficção baseado em notícias publicadas na Folha


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