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MOACYR SCLIAR
Zona de sombra
Ao menor choro do bebê, ela pulava da cama como que impulsionada por uma mola, mas a ele, mal dava atenção
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Pesquisadores mostraram como as mães
desenvolvem um ouvido tão aguçado para o choro de seus bebês, pela redução da
atividade nas áreas cerebrais não direcionadas especificamente para o choro
dos filhos. "Imagine um refletor iluminando um cantor no palco. Se outras luzes estiverem acesas, o artista não aparece tanto. Mas se todo o resto estiver escuro, o refletor destacará o artista muito
bem", explicou Robert Liu, da Emory University. Folha Ciência, 15.jun.09
QUANDO a mulher teve o primeiro filho, ele deveria, naturalmente, sentir-se feliz e
orgulhoso. Isso não aconteceu, por
uma razão da qual não falou a ninguém: suspeitava que o filho fosse de
outro. Não tinha nenhuma prova de
que a esposa o traísse; ao contrário,
ela parecia fiel e dedicada. Mas nove
meses antes ele passara algumas semanas fora, a serviço da empresa.
Pouco depois de sua volta ela
anunciou-lhe a gravidez. Ele tentou
mostrar entusiasmo, e, em parte,
conseguiu: ela não notou sua mágoa.
Que, contudo, foi crescendo à medida que o tempo passava.
Ele passou a vigiá-la e notou algo
que o desagradou profundamente;
ao menor chorinho do bebê, ela pulava da cama como que impulsionada por uma mola e ia atender a
criança. Mas a ele, ao marido, mal
dava atenção. Até fez um teste: uma
noite começou a gemer, primeiro
baixinho, depois mais alto, como se
estivesse passando mal.
Inútil: a esposa, profundamente
adormecida, nem sequer se mexeu.
Mas quando, já de madrugada, o
bebê começou a chorar ela pôs-se
de pé num salto.
Resolveu comentar o assunto com
um amigo, médico pediatra. E o fez
afetando despreocupação. O amigo
riu: "É assim mesmo, meu caro. Coisas da natureza".
E explicou que, de acordo com as
mais recentes teorias científicas, o
choro do bebê conseguia, de forma
absolutamente soberana, ativar o
cérebro da mãe, que aparecia iluminado nos exames especializados.
"Ou seja: o bebê acende o cérebro da
mãe. E deixa todo o resto, inclusive
você, na zona de sombra."
Nenhuma expressão poderia definir melhor o que ocorrera: ele agora
vivia na zona de sombra. Ele e os
seus espectros, ele e seus fantasmas.
Ah, mas a isso não se resignaria.
De forma alguma. Como Goethe no
leito de morte, bradaria: "Mais luz!"
E lutaria por essa luz com os meios
que estivessem a seu alcance. Mas...
quais eram esses meios? Como poderia ele, da mesma maneira que o
bebê, iluminar o cérebro da mulher
que, apesar de tudo, ele amava?
A resposta logo lhe ocorreu: o choro. O choro seria o abre-te Sésamo
que lhe permitiria sair da escura caverna em que se encontrava.
Ele tinha de chorar como o bebê, e
começou a treinar para isso. Gravou
o choro da criança e passou horas a
ouvi-lo. Depois de ensaiar durante
semanas, achou que estava pronto
para o grande teste: no meio da noite
acordaria a mulher com o simulado
chorinho. Ela descobriria então que
ele também existia; os dois se abraçariam e fariam amor. O nenê que
berrasse à vontade.
O teste decisivo seria realizado na
noite de seu aniversário. Mas, ao
jantar, enquanto brindavam à data,
ela disse que tinha um presente para
ele: estava grávida de novo.
Desta vez ele não tem qualquer
dúvida a respeito da paternidade da
criança. E está muito feliz em viver
numa zona de sombra. Onde às vezes até esboça o chorinho que tão
cuidadosamente ensaiou.
MOACYR SCLIAR escreve, às segundas-feiras, um texto
de ficção baseado em notícias publicadas na Folha
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