São Paulo, terça-feira, 29 de julho de 2008

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CECILIA GIANNETTI

Mulher impossível


Se tivesse que dar aalguém um conselho que considerasse imprescindível, diria isto: seja otimista

VIVE AGARRADA A uma tal rotina de cuidados que, se fossem deixados de lado, a sua ausência faria dela uma criatura suspensa, apagada. Ela deixaria de estar aqui ou ali, perderia arquivo e história. Uma mulher que não brilha. E a lembrança de sua beleza desapareceria mais rápido do que ela pode gastar dinheiro no shopping.
Experimentar essa suspensão é tentador, mas o mundo talvez perdesse o sentido se ela começasse uma greve particular. Não girava em torno dela?
Todo dia faz sempre a mesma coisa: alisa a roupa com as mãos espalmadas, inspeciona as unhas das mãos e dos pés, pintadas no mesmo tom de bege claro. Faz o controle de qualidade sobre o resultado de seus esforços, o que é também um tipo de prêmio pela disciplina com que se aplica a eles constantemente. É gratificante verificar e aprovar o material moldado por sua obstinação, obsessão e auto-estima absolutamente infalíveis. Antes de ela sair, diante do espelho, vai percorrer com satisfação, em sua memória, os sacrifícios e efeitos colaterais, tratamentos de pele no valor de um carro, aceleradores de metabolismo, medição semanal de gordura -no exame com a pinça de ferro gigante, na academia de ginástica-, "personal training".
Nos minutos passados diante do espelho, avalia o histórico repleto dos infinitos cuidados mantidos ao longo de anos. Desde os mínimos, aprendidos em idade que não consegue precisar, passando pela sua multiplicação na pré-adolescência e a manutenção no começo da vida adulta. Cada curva e traço em sua carne lembra uma etapa do aprimoramento buscado com perseverança, com seriedade, com abnegação. Em momento algum, agora, poderia relaxar e arriscar-se a perder nem uma centelha sequer deste brilho que não é obsessão, ela costuma frisar, é vocação.
Tem certeza, é a própria alma que expõe diante de si no espelho. Uma alma dedicada ao bem-estar de seu invólucro, à celebração de seu abrigo, um espírito firme cujos incansáveis trabalhos culminaram na construção do templo que ela pode observar, orgulhosa, e oferecer sem reservas ao escrutínio dos outros. Quase não se vê nela um defeito, seria preciso uma lupa... Gosta de pensar que seja assim e evita qualquer pensamento avesso a isso. Ao pensar em seus problemas -todos bem pequenos-, escolhe ignorá-los. Se tivesse que dar a alguém um conselho que considerasse imprescindível, diria isto: seja otimista.
Emoldurada pelo quadro de prata que aprofunda o quarto e afunila a sua mente diante de si, constata, um a um, os muitos atrativos em harmonia encadeados como cordões de flores por todo o seu corpo. E congratula-se por ter sido capaz de moldar naqueles braços e coxas os ângulos discretos e delicados de músculos femininos. Sorri para a sorte das maçãs do rosto altas e bem definidas, para as covinhas que lhe concedem um eterno ar infantil, para o brilho dourado que se desprende dos fios de seus cabelos e lampeja como um halo quando se vira para observar o traseiro sob o tecido fino bem ajustado ao corpo.
Não deseja aprender nada a respeito do amargo e do escuro, porém dispensa a ironia, muitas vezes até o riso. O medo exacerbado do ridículo é a total falta de humor. É importante demais para ser ridícula ou engraçada. Ri com os outros para não parecer tão diferente de todos, conforme sente-se de fato; o que vê no espelho é uma pequena metáfora de perfeição.


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