São Paulo, terça-feira, 29 de outubro de 2002

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MARILENE FELINTO

É proibido comemorar

É proibido comemorar, mas eu vou comemorar: por minha tia Irene, pelo menos, que também perdeu parte de um dedo na máquina da fábrica de tecidos em Paulista (Grande Recife), nos anos 50. Paulista, Caetés, Buíque, está tudo ali, naquelas vilas perdidas do interior do país, onde tudo foi sempre seco, matuto, duro e difícil. Buíque (PE), vilarejo muito perto de Caetés (onde nasceu o presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva), é onde o escritor Graciliano Ramos passou parte de sua infância, ele que nasceu em 1892 em Quebrangulo (Alagoas), no mesmo 27 de outubro que Lula.
E ele, Graciliano, que escreveu um romance chamado "Caetés" (1933) e outro chamado "São Bernardo" (1934), nome da cidade São Bernardo do Campo, onde o operário virou líder sindical. Está tudo ali. Está tudo aí, fazendo história universal, quase irreal, quase fictícia de tão surpreendente.
É proibido comemorar, mas eu vou comemorar: comemorar não uma pessoa, mas uma idéia, um símbolo. O povo elegeu sua própria cara mais profunda pela primeira vez. Isso é bom para a auto-estima do povo. Quem já experimentou o preconceito sabe -a discriminação por origem social, tão típica da estrutura da sociedade brasileira. É mais do que saudável que o poder mude de mãos: especialmente num país sempre dominado por uma elite sem nenhuma simpatia humana, de uma perversidade e de um egoísmo sem par no mundo.
É proibido comemorar, mas eu vou comemorar: ao menos pela menina "Te", de quatro anos de idade, que conheci num casebre de taipa em Cruzeiro do Nordeste (município de Sertânia, a 350 km de Recife) em 2001. "Te" era o apelido dela que não tinha nome ainda, não tinha certidão de nascimento, não tinha nacionalidade, não tinha país, não existia para o Brasil e seu censo. Não merecia nenhuma simpatia humana da parte desses governantes insensíveis, eruditos urbanos empertigados ou usineiros exploradores. "Te" estava doente, eu acho. Não parava de chorar quando a conheci, a não-sei-que-nascimento na fila de uma carrada de sete filhos de um casal analfabeto, que passava o mês todo com os R$ 80 que o chefe da família então ganhava carregando estrume para fazendeiros da região. "Te" era apenas esse monossílabo, seminua, suja, talvez faminta chorando no meio da casa.
Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU: "Artigo 21 - 1. Toda pessoa tem o direito de tomar parte no governo de seu país, diretamente ou por intermédio de representantes livremente escolhidos."
É proibido comemorar, mas eu vou comemorar: por um raio de esperança ao menos para essas tragédias nordestinas, a de "Te", a de Lula, a de Irene (que morreu alcoólatra e empregada doméstica a um salário mínimo mensal), a minha mesma. Se eu fosse dez anos mais velha, talvez tivesse vindo para São Paulo sacolejando na mesma boléia de um pau-de-arara. Vim 15 anos depois de Lula, mas de ônibus, da viação São Geraldo ou Itapemirim, não me lembro. Tive mais sorte, vim na poltrona já estofada do ônibus, numa viagem que durou quatro dias, ao invés de 13. Tive mais sorte, fiz curso superior.
É proibido comemorar porque jornalistas não comemoram, criticam. Mas cada coisa a seu tempo. Não faltarão críticas. Mais do que isso: há fascistas e neo-fascistas à espreita país afora. Farão de tudo para aterrorizar e destruir.
No momento, comemoro, faço do português o inglês (para o mundo entender) que me ensinaram por sorte na universidade -e digo como a atriz Marilyn Monroe disse ao presidente Kennedy, num dia de aniversário: "Happy birthday, Mr. President!", pelos mais de 50 milhões de votos.

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