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MARILENE FELINTO
É proibido comemorar
É proibido comemorar,
mas eu vou comemorar: por
minha tia Irene, pelo menos, que
também perdeu parte de um dedo
na máquina da fábrica de tecidos
em Paulista (Grande Recife), nos
anos 50. Paulista, Caetés, Buíque,
está tudo ali, naquelas vilas perdidas do interior do país, onde tudo foi sempre seco, matuto, duro e
difícil. Buíque (PE), vilarejo muito perto de Caetés (onde nasceu o
presidente eleito Luiz Inácio Lula
da Silva), é onde o escritor Graciliano Ramos passou parte de sua
infância, ele que nasceu em 1892
em Quebrangulo (Alagoas), no
mesmo 27 de outubro que Lula.
E ele, Graciliano, que escreveu
um romance chamado "Caetés"
(1933) e outro chamado "São Bernardo" (1934), nome da cidade
São Bernardo do Campo, onde o
operário virou líder sindical. Está
tudo ali. Está tudo aí, fazendo história universal, quase irreal, quase fictícia de tão surpreendente.
É proibido comemorar, mas eu
vou comemorar: comemorar não
uma pessoa, mas uma idéia, um
símbolo. O povo elegeu sua própria cara mais profunda pela primeira vez. Isso é bom para a auto-estima do povo. Quem já experimentou o preconceito sabe -a
discriminação por origem social,
tão típica da estrutura da sociedade brasileira. É mais do que
saudável que o poder mude de
mãos: especialmente num país
sempre dominado por uma elite
sem nenhuma simpatia humana,
de uma perversidade e de um
egoísmo sem par no mundo.
É proibido comemorar, mas eu
vou comemorar: ao menos pela
menina "Te", de quatro anos de
idade, que conheci num casebre
de taipa em Cruzeiro do Nordeste
(município de Sertânia, a 350 km
de Recife) em 2001. "Te" era o
apelido dela que não tinha nome
ainda, não tinha certidão de nascimento, não tinha nacionalidade, não tinha país, não existia para o Brasil e seu censo. Não merecia nenhuma simpatia humana
da parte desses governantes insensíveis, eruditos urbanos empertigados ou usineiros exploradores. "Te" estava doente, eu
acho. Não parava de chorar
quando a conheci, a não-sei-que-nascimento na fila de uma carrada de sete filhos de um casal analfabeto, que passava o mês todo
com os R$ 80 que o chefe da família então ganhava carregando estrume para fazendeiros da região.
"Te" era apenas esse monossílabo, seminua, suja, talvez faminta
chorando no meio da casa.
Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU: "Artigo 21
- 1. Toda pessoa tem o direito de
tomar parte no governo de seu
país, diretamente ou por intermédio de representantes livremente
escolhidos."
É proibido comemorar, mas eu
vou comemorar: por um raio de
esperança ao menos para essas
tragédias nordestinas, a de "Te",
a de Lula, a de Irene (que morreu
alcoólatra e empregada doméstica a um salário mínimo mensal),
a minha mesma. Se eu fosse dez
anos mais velha, talvez tivesse
vindo para São Paulo sacolejando na mesma boléia de um pau-de-arara. Vim 15 anos depois de
Lula, mas de ônibus, da viação
São Geraldo ou Itapemirim, não
me lembro. Tive mais sorte, vim
na poltrona já estofada do ônibus, numa viagem que durou
quatro dias, ao invés de 13. Tive
mais sorte, fiz curso superior.
É proibido comemorar porque
jornalistas não comemoram, criticam. Mas cada coisa a seu tempo. Não faltarão críticas. Mais do
que isso: há fascistas e neo-fascistas à espreita país afora. Farão de
tudo para aterrorizar e destruir.
No momento, comemoro, faço
do português o inglês (para o
mundo entender) que me ensinaram por sorte na universidade
-e digo como a atriz Marilyn
Monroe disse ao presidente Kennedy, num dia de aniversário:
"Happy birthday, Mr. President!", pelos mais de 50 milhões
de votos.
E-mail -
mfelinto@uol.com.br
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